quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Carnaval, carnaval, todo ano tem o carnaval

Odiava carnaval. Todo mundo estava atrás dos blocos, dos trios elétricos e dos guarda-chuvas coloridos. Ele ficou em casa. Não atendia celular nem telefone, os amigos acumulavam os convites. Viu filmes, viu novela, mas não aguentava ver jornal, muito menos transmissão de carnaval. Em algum momento, ainda na segunda de manhã, já estava saturado da televisão, da internet, e da videolocadora.



O carnaval vencera. Aceitou uns convites esperançosos de amigos insistentes e foi dar uma olhada nos blocos de rua da cidade. Não se fantasiou, mas uma das amigas lhe cedeu um chapéu de cangaceiro e um colar de flores havaianas. Não pulou muito, mas ficou feliz com as companhias. A cerveja estava gelada, gostou do serviço dos ambulantes, apesar de terem atravancado o percurso. Não entrou no meio da multidão, gostava do espaço no próprio entorno. Os amigos também, faziam rodinha, ensinavam-lhe passos, os amigos eram legais, ele tomou algumas latinhas, e começou a se soltar. As marchinhas não eram parte do seu dia-a-dia, mas ele conhecia a maioria. Era fácil porque elas eram só refrões.



Abraçava os amigos, dava o braço a torcer. Estava se divertindo. Talvez não fosse o folião típico, nem o mais animado, nem o rei do pique e do samba do pé. Mas estava passando um dia agradável, em companhias com quem simpatizava e, é bem verdade, com algumas cervejas na cachola. Estava se divertindo. O carnaval vencera.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Conto erótico sem nenhum palavrão

Tinha transado cinco vezes naquele dia. Não era seu recorde pessoal, mas era o recorde com ela. Não sabia do dela, mas admitia que não deveria ser também. Sua conta se baseava na quantidade de vezes que ele havia completado. Se o placar fosse baseado nela, a goleada seria menor, mas não desprezível. Mas ela também contava a partir dos resultados dele. Reflexos de um machismo intrínseco.

A primeira foi logo depois do almoço. Ainda estavam de barriga cheia, os dois. Foi uma transa preguiçosa, de lado, movimentos sem muita gana. Os dois morgados e sonolentos na sesta. No fim, ele sim, ela não. Mas tinha sido bom. Serviu para aproximar os dois para o cochilo da tarde. Dormiram abraçados, o que não era muito comum.

A segunda vez começou com uma surpresa. Ele ainda dormia, acordou com um belo presente dela. Ainda estava lerdo por conta do sono quando ela subiu por cima dele e fez praticamente todo o trabalho. Ela parecia ter vindo direto de um sonho erótico. Ele estava claramente em uma outra sintonia. A distração do sono, ao mesmo tempo que lhe roubava um pouco da libido, lhe rendia alguns minutos a mais que o habitual, o que, por sua vez, permitiu a ela concluir seus intentos. Foi bonito, os dois quase ao mesmo tempo. Ele acordou perto dos finalmentes, de vez.

Não demorou muito, veio a terceira. Agora os dois totalmente acesos, sem desculpas, todos os órgãos do corpo pareciam voltados para aquilo. A performance foi memorável até. Algumas trocas de posições, desejo em alta, corpos que suavam e se preenchiam. Sucesso. Ela empatava o placar com uma rodada dupla. Não contou pra ele, mas ele percebeu que ela tinha adorado. Ganhou beijinho ao pé do ouvido. Pra ele também tinha sido ótimo.

Ela achou por bem retribuir o sucesso obtido anteriormente, e, meia hora e um episódio de Californication depois, presenteou-lhe com uma de suas modalidades favoritas. Passou uns 5 minutos proporcionando-lhe prazer, até que não resistiu e virou-se, num convite irrecusável que ele prontamente aceitou. A quarta vez foi apoteótica e bastante demorada. Até mais longa do que deveria, no final estavam exaustos, quase desistindo. Ele, principalmente, já que escolheram posições que exigiam de seu parco preparo físico. Prometeu-se, mentalmente, voltar para o tênis na segunda-feira. Mas chegaram até o fim, que era, na verdade, o fim dele. Ela se deu por satisfeita dele ter terminado. Já estava distraída, pensando nos afazeres da semana.

Dormiram, bem cansados e suados. Ele pôs o ventilador no máximo, ela desfez-se do lençol. Ele acordou com ela procurando suas coisas. Propôs um banho, ia fazer bem. Entraram juntos no chuveiro. Ele abriu mão da água fria que preferia, só para agradá-la. Ela começou a ensaboá-lo, e ele a ela. Se abraçaram, se beijaram, e transaram em pé, enquanto a água corria. Usou as mãos em parceria. As suas e as dela, nela. Ela chegou antes dele. Até agora ela não sabe se ele acabou chegando, ou mentiu para encerrar. Por um momento, pensou se de repente ele teria enjoado. 5 vezes, e nem eram namorados. Ainda, pelo menos.

Afastou esses pensamentos quando ele lhe deu um beijo ardente e demorado, como se o chuveiro fosse a chuva dos filmes românticos, em que o casal se beija apaixonadamente, a música sobe, fade out, e vivem felizes para sempre. O cenário não era de chuva, nem havia trilha sonora, mas com o chuveiro como testemunha, aquele casal que pensava estar apenas se divertindo num pernoite de motel, na verdade, estava começando a descobrir o amor.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O cineasta

Não tinha visto o vídeo de Paris Hilton, nem o de Cicarelli. Vira, na pré-adolescência, o de Pamela Anderson, numa concorrida fita vhs que um amigo tinha trazido do intercâmbio nos Estados Unidos, junto aos bonés do Mickey e bonecos articulados. Não sabia quem era Júlia Paes nem Márcia Imperator. Gretchen, para ele, era uma cantora (sic). Rita Cadillac, uma chacrete das antigas.

Pois, agora, conhecia Júlia Paes, Márcia Imperator, e uma penca de outras moças e rapazes. Descobrira outras atribuições de Gretchen e Rita Cadillac. Depois de anos de faculdade, investimentos pessoais, cursos, trabalhos em mostras de realizadores renomados, estágios em longas de prestígio, dois curtas de boa repercussão no currículo, via-se ganhando bem, muito bem, fazendo cinema pornô.

Tinha começado meio sem querer. Vencera um pitching para um programa num canal por assinatura. No meio da produção do piloto, o comando do canal achou o programa muito forte para o perfil do público, e repassou-o para outro canal do mesmo grupo, de conteúdo adulto. Fez o programa e agradou, acabou fazendo mais dois. Daí, recebeu o convite para sair do mundo erótico chic e entrar no pornô.

Começou claudicante, queria trama, história, travellings, atuações. De cara já foi esculachado pelos produtores. Passou para o bê-a-bá e ganhou mais credibilidade. Seu diferencial era a exploração da sensualidade, antes da consumação do ato. O que muitos viam como enrolação, ele via como atração. As preliminares do pornô, que não eram necessariamente as preliminares do sexo. Investia numa sugestão sexual, num certo mistério, pra depois a coisa rolar por completo.

Apesar de umas torcidas de nariz, levou adiante seu intento e conseguiu amealhar muito sucesso. Que era igual a dinheiro, na verdade. Uma vez foi na pré-estréia do filme de um colega da faculdade. Encontrou muita gente. Nem todos sabiam da sua ocupação atual. Apesar de rico, tinha alguma frustração por não fazer o que queria. Também não desejava fazer o que queria e viver num kitchnet apertado e andar de ônibus.

Na verdade, não sabia. Via seu colega ali, em cima do palco, anunciando todo orgulhoso seu longa-metragem. Podia nem ser bom. Mas via que o orgulho que o colega sentia ali em cima era genuíno. Isso ele não tinha.

Pegou um vôo naquela mesma noite e foi recuperar-se da melancolia com um passeio de uma semana em Fortaleza num resort em Jericoacoara. O dinheiro comprava algum orgulho, no fim das contas. Foi pensar nos prós e contras de sua vida num passeio de barco. Precisava se convencer de que, no fim das contas, estava feliz.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A dona do bar

Ela era dona de um bar na Lapa, reduto da boemia, e que só fechava quando o último cliente saia, dormia ou morria. Era o bar preferido para encerrar a noite, principalmente por, depois de certa hora, ser a última opção. Ali se juntavam, bêbados, playboys inconsequentes, prostitutas e cafetões, criminosos de diversas estirpes, além de policiais em ronda - do jeito que eles entendem por ronda. Só não aparecia ali gente de bem.

Já fora prostituta e já vendera droga. Se requisitassem, ainda conseguia arranjar um pouco de pó e maconha. Crack, era terminantemente contra.

Nunca matara ninguém, mas já ferira uns clientes agressivos com canivetes e barras de ferro. Já mataram dentro do seu estabelecimento. Bandidos com bandidos, policiais com bandidos, bandidos com policiais. Mas, ali, ninguém era diferente. Brigavam ali e acertavam as contas ali, com ou sem sangue. E, fora dali, ninguém procurava saber.

Se ela era feliz? Não, não era. Mas achava que felicidade não era pra gente como ela. E se resignava em sobreviver. Nunca tinha se apaixonado, e não fazia mais questão. Os anos de ponto na praça lhe haviam empalidecido o coração. E a quantidade de sangue que já vira jorrar, conhecidos e desconhecidos, em sua frente ou em seus sonhos, lhe roubou a alma.

Se havia um momento em que era feliz, eram as noites quando sonhava sua vida diferente. Não eram frequentes, essas noites desses sonhos. Mas ela sempre esperava ansiosa pela hora de dormir.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A banda dos amigos

Tinha uma banda. Tocava baixo. Seu melhor amigo era o vocalista. Na guitarra, um outro grande amigo, dos tempos de colégio. O baterista era um conhecido, mas tocava bem e era na dele. E tinha uma bateria. E um carro.

Não eram um grande sucesso, nem mesmo na cidade, mas conseguiam fazer uns shows aqui e ali. Geralmente sem cachê, quando muito, algumas bebidas da casa. Tinham alguns fãs que acompanhavam a banda nos shows com frequência, além dos amigos - a turma era grande - e das namoradas. Deles e dos amigos.

Todos tinham outras profissões. Música era um hobby. Uma paixão, na verdade. Mas não era o meio de vida de ninguém. É bem verdade, nenhum deles tinha um meio de vida muito forte ainda. Eram músicos independentes, mas que ainda moravam com os pais.

Faziam composições próprias, e tinham prazer em compor juntos. Principalmente ele e o melhor amigo, o vocalista. Ele não gostava muito de fazer covers, mas seu amigo achava essencial. Pra ganhar público, dizia. Ele achava besteira. Queria ganhar o público com suas próprias músicas.

Esse foi o primeiro embate dentro da banda. As namoradas ainda viriam a brigar entre si para pôr a pá de cal que faltasse. As Yoko Ono da banda dos amigos. Mas isso ainda seriam cenas de um próximo capítulo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Hora da verdade

Ia contar assim que ela acordasse.

Não conseguia mais manter a mentira. Nem achava que ela estava desconfiada, mas, dentro dele, sentia-se muito mal por estar enganando ela. Sentia-se ainda pior porque sabia que, assim que contasse, ela ia se sentir a maior idiota do mundo por não ter enxergado aquilo ali na cara dela.

Ela demorava a acordar, e a ansiedade, misturada com aflição, tomava conta dele. Será que ela entenderia que toda essa falsidade tinha, no fundo, a intenção de poupá-los de uma crise pior? Que, agora mais que tudo, ele sabia que a amava? Que esperava ser perdoado?

Afinal, tinha algum crédito. Eram muitos anos de relação. Não podia pôr tudo a perder por causa de uma noite em que bebera além da conta. Seus amigos estavam de prova, vinha tropeçando desde a saída do bar. Foi muito sem querer que trombara no aparador e derrubara a vela chinesa, último presente da avó antes de falecer.

Mas ia contar, assim que ela acordasse.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Casanova da zona sul

Comprou o jornal do dia e foi direto na programação do cinema. Era uma época de poucas novidades interessantes nas salas da cidade. Época pós premiações, só filmes obscuros estreando. Pulou para a coluna dos teatros. Uns títulos curiosos, mas nem por isso atraentes. Mania de dar títulos enormes às peças. O preço também não era nada convidativo. Ligou para um teatro onde a peça de uma atriz veterana e muito premiada estava em cartaz. Esgotada.

Um jantar seguramente estava no cardápio da noite, mas precisava de algo mais. Jantar, seguido de subir no apartamento para ver um DVD ou escutar uns discos seria muito atrevimento. Primeiro encontro, precisava de outra abordagem. Com cineminha ou teatro de fora, estava sem imaginação para pensar no que poderia combinar com o jantar. Antes ou depois dele.

Motel passou-lhe pela cabeça. Riu, debochando de si mesmo.

Uma exposição, um museu... tinha medo de parecer pretensamente intelectual e pôr tudo a perder. Boate... achava que já tinham passado da idade. Quem sabe um show? Foi olhar o que estava passando nas casas de show mais tradicionais, que têm mesa e garçons servem bebida e comida. Um espetáculo de comédia em uma, um show sertanejo em outra. Desistiu.

Já estava se sentindo fora de forma na arte do flerte, mas agora sentia-se muito pior na arte do encontro. Aos 64 anos, recém divorciado, parecia que tinha desaprendido tudo o que lhe fizera ser o Casanova da zona sul aos 20 e poucos.

Foi quando seus olhos brilharam, e percebeu o que precisava para fazer daquela noite, uma noite especial e inesquecível. Retomou o velho Casanova que era, tornando-se novamente o Casanova que fora.

Um jantar, seguido de um baile dançante no La Plata. Sabia que lá conheceria as músicas, saberia os passos de dança. Rejuvenesceria, não adequando-se ao hoje, mas voltando à sua própria juventude. E poderia mostrar que, 40 anos depois, ainda batia ali um coração ritmado ao som de Gardel. Como na juventude. Como nos tempos do Casanova da zona sul.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O padre e a moça (ex BBB)

Uma ex BBB, capa da playboy, algumas pontas em seriados e programas de TV. Tudo isso nos 3 meses após o término do reality show. Depois, nos 3 meses seguintes, aparições rarefeitas em programas de qualidade cada vez mais questionável. Até o ostracismo e a volta a um mundo que, se não real, era bem menos brilhoso.

A ex BBB conheceu um ex padre. Católico praticante desde criança, estudos teológicos no seminário. O melhor aluno. Ordenação ainda bem jovem. Devoção total nos primeiros anos. Acomodação numa paróquia do interior. Vida recatada e tediosa. Até que um furacão de pele morena e olhos expressivos de 18 anos passou em sua vida. Ela talvez jamais o houvera visto. Ele se apaixonou platonicamente e largou a batina sem jamais ter provado dos prazeres da carne da moça. E de moça nenhuma até hoje. Mas o desejo carnal latente fora pecado o bastante para questionar sua própria vocação e optar por abandonar.

Pois a ex BBB conheceu o ex padre numa padaria. Ele comprava pão sírio. Passou a comer - e adorou - depois que deixou a igreja. Continuava católico, mas agora permitia-se algumas novidades além das linhas inimigas. Ela, pão de forma light. Os produtos estavam bem próximos na gôndola do canto. Os dois se encontraram. Ele jamais vira a moça na TV, mas olhou pra ela candidamente. Ela, acostumada com as pessoas que a viam, mas não reconheciam de primeira, sorriu empolgada. Cumprimentou o padre com um bom dia de apresentadora de telejornal. Entusiasmado, mas quase mecânico. O padre ficou impressionado com a gentileza e, por força do hábito, respondeu com um que deus lhe abençoe.

A cara de interrogação da ex BBB foi clara. E o ex padre ficou sem graça. Emendou, tentando fugir do embaraço, que o pão sírio também tinha baixa caloria e era muito mais saboroso. A ex BBB resolveu dar crédito àquele sujeito estranho.

E perguntou se ele era seminarista. Fui padre, ele respondeu, mas deixei a igreja.
Fui do Big Brother, na segunda edição. Já faz uns 7 anos.
Não sou muito de TV, me perdoe não tê-la reconhecido.

Ela disse que não tinha problema. E que devia desculpas também por ter cuspido uma hóstia certa vez. Ele sorriu, achando engraçado. Ela sorriu, despediu-se e saiu. Ele foi comprar alguns outros itens. Gostaram das sinceridades um do outro.

Mas tinham segredos. A ex BBB já tinha sido noviça. E o ex padre já a conhecia da capa da Playboy, a marcante morena de olhos claros.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Pizza pra janta

Pediu uma pizza. Marguerita e peperoni. Estava com fome, sentia que poderia comer a pizza sozinho. Tamanho família. Como brinde da casa, ainda viria uma pizza pequena doce, sabor chocolate com castanha.

Era um pouco tradicional em termos de pizza. Odiava as combinações pós-modernas. Pizza de strogonoff, pizza de picanha, pizza de feijão. Fora as combinações pavorosas com catupiry, o que lhe dava asco. Mas, tinha que dar o braço a torcer, a pizza de chocolate lhe havia agradado. Sua porção italiana torcia o nariz, mas era inegável o prazer que sentia ao comer. E, como era brinde, não iria recusar.

De brinde vinha também um refrigerante 2 litros à sua escolha. E a escolha era óbvia. Coca-cola. Assim como nas pizzas, também era bem conservador quanto aos refrigerantes. Coca-cola, guaraná, sprite. Só tomava desses. Mas aceitava que tomassem Fanta, até mesmo uva, porque eram tradicionais. As invenções (fanta tangerina, coca-cereja, com limão, H2Oh, etc), estava fora.

Cheio de verdades e senhor de si, colocou a mesa pra um. O jogo americano, o prato, o garfo e a faca. Um copo, o balde de gelo (como estava calor!) e o porta-guardanapos. Colocou também a garrafa de azeite de oliva, que caia muito bem nas pizzas. Catchup e maionese eram heresias. Nisso, seu lado italiano era imperdoável.

A pizza chegou. Abriu a embalagem em cima da mesa. Cheirosa como se fosse a última pizza do mundo. Parte verdade, parte fruto da fome intensa que sentia. Cortou a pizza em 8 fatias, simplesmente para ter um controle tradicional, porque, no fim das contas, só havia ele pra comer.

Sentou e comeu.

E por um instante, vacilou, desejoso de não estar jantando sozinho.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Craque - Prólogo.

Tinha sido uma promessa do futebol. Aos 19 anos, estava jogando o fino. Tinha velocidade, técnica refinada e precisão no chute. Era magrinho, alvo de pancadas, mas tinha bons reflexos e esquiva apurada. Ainda assim, tinha pavio curtíssimo e, a cada pancada recebida, a fúria e o sentimento de vingança eram enormes. Envolveu-se em brigas memoráveis dentro de campo. E colecionava tantos cartões vermelhos quanto gols de placa e elogios da imprensa.

Foi alçado a titular de um grande clube sem ter completado 20 anos. Era presença certa nas seleções de base, e os mais entusiastas de seu futebol já pediam o jovem craque na seleção principal.

Comprou um BMW antes até de tirar a habilitação. Comprou a habilitação também. Comprou o amor de algumas mulheres (ao mesmo tempo) e a amizade de um sem-número de pessoas, dentro e fora do mundo do futebol. Vestia as grifes mais caras e ia nas melhores boates. Passou a ser figurinha fácil nas noites da cidade.

Seu futebol continuava prestigiado. Uma sondagem da Itália lhe garantiu um aumento substancial, e ficaria no Brasil até o ano seguinte. As noitadas se intensificaram. O clube abafou diversos escândalos, mas as faltas nos treinos matinais e as constantes fugas da concentração passaram a comprometer o grupo. Os jogadores mais experientes - e bem menos badalados - acusavam o treinador de permissividade. O craque desdenhava dos velhos ídolos do passado e se projetava como herdeiro da 10 canarinho.

A imprensa esportiva celebrava o craque folclórico. A imprensa marrom, o craque dos escândalos. A soberba já começava a incomodar companheiros e adversários. Os carrinhos passaram a ser cada vez mais duros - e mais altos. Chegou a sair chorando de campo em três oportunidades, só naquele campeonato. Pela primeira vez, ficara de fora por 1 mês devido a uma lesão por pancada.

Certa feita, numa goleada em que tinha marcado duas vezes, passou o pé por cima da bola, gingou pra lá e pra cá, e tomou um carrinho maldoso por trás. O adversário foi expulso. Dizem as más línguas que um companheiro pensou alto um "bem feito".

Ficou 1 ano sem jogar, recuperando-se da fratura em três lugares na perna direita, que lhe custou um contrato milionário com o clube italiano, uma convocação para a Copa América, e uma dor que o fez chorar. A dor de ver sua carreira - sua vida - ruirem em um instante.

Continua...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Guia de Viagem

Não conseguia encontrar o bendito guia de viagens que comprara há uns três anos, quando achava que iria fazer um curso de três meses em Nova York. Na ocasião, desistira da viagem poucos meses antes por conta do falecimento da mãe. Mas, agora, outra oportunidade tinha surgido, ainda mais interessante, e já estava com tudo acertado para viajar.

Lembrou daquele guia por acaso. Não era melhor que outros guias que poderia comprar em qualquer livraria. Mas sabia que, ali dentro, havia algumas preciosidades que não encontraria entre as milhões de páginas de todos os guias de Nova York do mundo juntos, em qualquer língua, em qualquer edição.

Procurava obstinadamente. Abriu todas as portas do armário, remexeu todas as gavetas, tirou os livros da prateleira e observou todos os espaços possíveis dentro daquele apartamento que, por sorte, não era muito espaçoso. Chegou à sala, que ainda tinha umas teimosas caixas que nunca foram abertas desde a última mudança, há não mais que dois meses. Começou a abrir a primeira caixa, a da impressora.

Copos de vidro devidamente embrulhados em jornal. Nunca sentira falta daquela coleção. Tinha outros copos no armário. E, de qualquer forma, usava sempre o mesmo copo de plástico amarelo para tomar refrigerante. Água, direto no gargalo. Cerveja, na lata ou na long neck. Toddynho, no canudo. Suco... suco?

Passou a fita adesiva na caixa da impressora com os copos embrulhados em jornal. Pegou a outra caixa que ficava imprensada entre a estante da TV e a parede da sala. Um caixa menor, originalmente de um abajour que ganhara no open-house que promovera, e que fora um fiasco. Não fazia idéia do paradeiro do abajour. Dentro de sua caixa, alguns pocket-books. Teve sua época compulsiva de comprá-los nas bancas de jornal.

Foi retirando um a um, espanando a poeira e observando quanto dinheiro havia gasto com uma literatura da qual lera pouquíssimos. Crime e Castigo (não conseguira ir além da página 49), O Príncipe (ainda plastificado), Cuca Fundida (esse leu inteiro, adorava o estilo Woody Allen de escrever), O Grande Gatsby (não conseguia se lembrar se leu), On the road, Dom Casmurro, Veríssimo, Neruda, Shakespeare, Angeli.

Até que, embaixo de tudo, embaixo de um castigado livro de receitas, com uma página de pavê de chocolate solta e amassada, estava o guia de Nova York que vinha procurando. Não se lembrava porquê tinha alocado naquela caixa de livros que não lera, nem leria. Ou, talvez, que não quisesse ler.

Abriu o guia, folheou. E, no meio de suas páginas, entre as dicas de restaurantes em Upper East Side, o bilhete dela. Desejos de boa viagem, de amor incondicional, votos de sucesso e de confiança plena. Aquele bilhete, escrito há três anos, não estava datado. Ele tinha certeza que o bilhete estava renovado. Não indicava o local, porque era pra qualquer lugar. Não tinha data porque seria pra sempre. Como dizia o epílogo do bilhete.

"Te amo pra sempre. Mama"