domingo, 23 de agosto de 2009

As suas coisas

Voltou naquele dia. Abriu a porta de casa e entrou, sem acender as luzes, só com o que vinha do corredor. Arriou as malas e bateu a porta atrás de si. Um instante de negrume. Frio na espinha. Acendeu a luz da sala. Os móveis continuavam lá, no mesmo lugar. A revista que ele havia largado sobre o sofá ainda estava aberta na mesma página. Havia mais poeira no rack da TV e tinha a impressão que o mofo na parede havia aumentado um pouco. A cadeira estava desarmada, como quando ele saiu. Os eletrônicos fora da tomada, como ele deixou.

Tudo igual a quando ele partiu. Sentiu certo alívio. Deixou as malas na entrada e sentou-se no sofá. Mexeu na revista, fechou. Olhou a capa, já não se lembrava mais do que se tratava. Olhou mais um pouco o apartamento, se familiarizando com ele depois de uma temporada fora. Recostou-se no sofá e deixou o silêncio lhe trazer as lembranças, o cheiro e a vida ali de dentro. E ia se sentindo em casa de novo.

Levantou-se, ligou a TV na tomada e colocou num canal de música. Ia se sentindo mais leve. Olhou dentro do banheiro, o gás fechado. A espuma de barbear sobre a mesa - tinha se lembrado de fazer a barba minutos antes do taxi chegar para buscá-lo. Nada diferente de quando saíra.

Entrou no quarto. A cama desfeita, como ele sempre deixava de manhã. Caixas e sacos ainda encostados no canto do quarto a espera de uma arrumação mais definitiva. Abriu o armário. Suas roupas lá, com a bagunça organizada dele. Colocou os documentos que não usava no dia-a-dia, mas que tinha levado pra viajar, de volta na primeira gaveta. Abriu as duas últimas. Vazias.

E então o apartamento ficou completamente diferente de como ele havia deixado ao sair.

domingo, 9 de agosto de 2009

Em Face do Maior Encanto

Uma música “brega” tocando ao fundo, baixinho.

Um senhor que vem caminhando de longe, e sua imagem vai crescendo à medida que se aproxima do portão. Trajes formais, mas sem ostentação. Um chapéu na cabeça. Um portão baixo, bambo, prestes a romper-se de uma mureta igualmente decadente. O senhor, que não tem nome mas que surge como alguém em meio à paisagem árida e quente, passa pelo portão com a segurança de quem o conhece de outros tempos mais vigorosos. Caminha pelo jardim sofrido e alcança a porta de madeira de uma casa de paredes descascadas, mas que ainda conserva sua sisudez sertaneja.

O senhor abre a porta e entra, sem olhar para os lados. A música agora é totalmente presente. O senhor vai direto ao bar improvisado atrás de um balcão no meio de uma sala. Prateleiras com bebidas, conhecidas e desconhecidas, garrafas cheias e vazias. Paredes pintadas. Vermelho e branco. Pôsteres na parede. Anúncios de bebidas e mulheres. Um sinuca no outro cômodo, onde jogam dois sujeitos com ares rabugentos. Uma mulher de roupas provocantes bebe uma cerveja e os vê jogar sentada na mesa de bilhar. O senhor sequer os nota – ou não faz questão de notar.

Olhando para baixo, numa concentração misteriosa, apenas acomoda seu chapéu no balcão, a seu lado e, de soslaio, faz um breve sinal ao garçom, que prontamente lhe traz um copo com a cachaça mais pura que se pode arranjar num lugar como aquele. Copo na mão, um pingo para o santo. E o senhor bebe a cachaça num gole só, entre o prazer e o ardor do líquido escorrendo a garganta. Sem troca de olhares, o senhor faz um aceno com a cabeça, em agradecimento. Levanta-se. Pega seu chapéu e entra por uma porta de miçangas num corredor escuro.

A música brega continua dentro do corredor praticamente sem luz. Uma porta lateral entreaberta é a única fonte de luz ali. Pela fresta, vê-se uma mulher de bruços. Rosto e braços. Transa com um homem que não se vê – nem ela mesma. Rangidos da cama. Respiração ofegante – do homem. O senhor, impassível, encosta a porta. Breu. O senhor segue andando no escuro. Ao final do corredor, abre uma porta. Luz. Dentro do quarto, pés descalços de uma menina na cama.

O senhor abre a porta e entra. Uma menina que aparenta em torno de 14 anos está deitada na cama. Nua. Virginal. Cabelos compridos. Inocência. A menina olha para o senhor, que retribui o olhar. Inexpressivos, os dois. O senhor fecha a porta atrás de si, sem parar de olhar a menina. Ao bater da porta, a menina vira-se de lado, dando as costas ao senhor. Como se dormisse. Mas tem os olhos abertos. Atentos. Expressivos. Atrás, o senhor a observa, ainda parado em frente à porta fechada.

O senhor tira seu chapéu e o acomoda numa mesinha de vime postada ao lado da porta, sob alguns quadros de natureza morta. Senta-se na cama ao lado da menina. Ligeiro rangido de madeira velha. Senhor observa a menina nua deitada ao seu lado, de costas para ele. Olhos abertos, os dois. O velho passa os dedos pelo contorno lateral da menina. Hesitante. Impressionado. Olhar expressivo. Olhos abertos, a menina. Expressivos.

O senhor tira os próprios sapatos, meias. Acomoda-os, lado a lado, junto à cama. Desabotoa a camisa social. Tira o cinto, enrolando-o sobre o criado mudo. Abaixa as calças com a cueca. Dobra e coloca sobre os sapatos. Tira a camisa social, pendura no encosto da cama. Nu. Deita sua nudez ao lado da menina. Barriga para cima. Olha para o teto. Sua nudez velha contrastando com a juventude desnuda e inocente da menina. Rugas, pelancas, pelos. Pele, poros, pelos. O velho deitado, barriga pra cima. Menina deitada de lado. Olhos abertos. Duas nudez.

É de manhã. A menina está deitada, nua, na mesma posição. Olhos fechados. Dorme tranquilamente. Intocada. Sozinha na cama. O velho não está.

No banheiro, o velho está sentado na privada. Nu. Segura a cabeça com a mão, segurando a própria dor. Respira fundo. Aperta os olhos, comprimindo a própria dor. A cachaça que sai com o mesmo ardor com que entrou. Pingo a pingo, vermelho sangue.

A menina dorme na cama. Sozinha. Sono angelical. 14 anos. Dorme a mesma nudez. Infantil. Intacta. Vira-se na cama. Ainda dorme. Mesmo com o barulho de uma descarga vindo do banheiro ao lado.

Descarga acionada pelo velho. Seu esforço tragado cano abaixo, sangue e urina. A dor aos poucos vai amainando. O velho lava as mãos na pia. Olha-se no espelho. Velho. Ainda mais velho.

Terminando de vestir-se, no quarto, o velho não olha mais a menina, que ainda dorme nua na cama. Para ela, é cedo. O velho recolhe seu chapéu. Sai do quarto, levando-o na mão.

Do lado de fora da casa antiga, sob um céu nublado, o velho passa pelo portãozinho da saída prestes a cair. Caminha com o chapéu na mão para o longe. Velho.