terça-feira, 21 de abril de 2009

Trabalho

Queria ganhar dinheiro fazendo o que gostava. Para fazer o que gostava, precisava já ter dinheiro e poder começar do zero em algo novo com algum lastro. Para já ter dinheiro, precisava fazer o que não gostava, mas pagava. E, fazendo o que não gostava, para faturar, não tinha tempo nem condições de fazer o que gostava, conciliando. Estava nessa encruzilhada.

Tinha algum sucesso na empreitada que vinha seguindo. Não era algo que desprezava, mas não era o que realmente queria fazer. Ou que, pelo menos, acreditava querer fazer. Nada garantia que, ao começar, de fato, a fazê-lo como uma profissão, não se desencantasse. Desde criança ouvia que não se pode fazer só o que se quer. E, certa vez, ouvira uma frase que não dera muita bola, mas hoje via como era precisa. Quando hobby vira trabalho, deixa de ser hobby. E trabalho, no fringir dos ovos, é chato.

Como seus dois amigos que sonhavam em ser tenistas. Um decidiu ir atrás do sonho, foi treinar, procurar patrocínio, se jogou na carreira. O outro foi ser advogado. O que se jogou na carreira de tenista não chegou muito longe. Apesar de ser o seu sonho, não teve talento, ou aquela sorte - chamem como quiser - que só os campeões têm. Mas, mesmo assim, consegue, até hoje, viver e sustentar sua família com o tênis. Virou professor, um dos melhores e mais requisitados da cidade. Mas o hobby virou trabalho, e dar aula de tênis é chato. Encarar os alunos, os pais dos alunos, nada do que pensou quando resolveu encarar a carreira.

O advogado também acha seu trabalho chato. Ganha bem mais que o antigo parceiro das quadras. Com isso, ele consegue bater uma bola, por hobby, todo fim de semana. Em junho, sempre tira uma semana de férias para ir até a Inglaterra acompanhar o torneio de Wimbledon. Em janeiro, passeia na Bahia durante o Brasil Open.

Mas, e se o amigo tenista tivesse despontado e tornado-se um profissional vencedor no circuito do tênis mundial? E se o advogado não tivesse obtido sucesso na profissão e hoje fosse um advogado qualquer de porta de cadeia, que certo dia defendeu um criminoso que já o havia assaltado numa outra oportunidade?

O professor de tênis encostava a cabeça e dormia orgulhoso de si, por ter tentado. E frustrado, por não ter conseguido. O advogado dormia com a dúvida. Em travesseiro de pena de ganso.

Pois, depois de pensar tanto nos seus dois amigos e no destino de cada um, resolveu tomar uma atitude. Ligou pros dois e marcou um chopp. Os problemas da vida podiam ficar pra depois, afinal, o time dos três estava beirando a zona de rebaixamento, a nova capa da Playboy era aquela gostosa do Big Brother e ele tinha aprendido umas piadas ótimas de advogado para sacanear.

sábado, 18 de abril de 2009

A estante

Tirou o dia pra ser dona de casa, na acepção machista do termo. Primeiro, lavou a louça toda. Já acumulava alguns dias, estava sem facas. Depois, uma varrida na sala, muito da fajuta. Pretendia passar pano no chão, mas descobriu que ainda não tinha comprado panos de chão.

Partiu, então, para uma atividade mais masculina. Foi montar a estante, que já lhe entulhava a sala há dois meses, aguardando uma montagem divina, pois jamais contratou quem quer que fosse pra montá-la. Resolveu fazê-lo ele mesmo, e sozinho, condição em que se encontrava no momento.

Deitou as madeiras, distribuiu as prateleiras, fez contas, fez análises, estudou o caso e partiu para concluir o intento. Com uma chave de fenda barata que comprara numa lojinha de artigos chineses em punho, apertou parafusos, apertou dobradiças, fez e aconteceu. Suou pra caramba, ouviu música, descansou, bebeu água. E concluiu.

Ficou orgulhoso de si. Fizera algo que vinha adiando há tempos, e sem gastar nada. Uma economia de 30, 40 reais, digamos. Dava pra comprar um ou mais livros, dava pra ir ao cinema 4 ou 5 vezes, dava pra ir no teatro ver Hamlet. Mas tudo isso teria que esperar.

Ficou com uma dor nas costas que o obrigou a deitar o resto do fim de semana.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Paredes pintadas

Ele acordou com a claridade que entrava pela janela sem cortina do apartamento. Pelo menos não era o sol batendo ali de manhã. Era a única vantagem de se ter um apartamento com o sol da tarde. Mas ele sabia que, na hora de ver televisão depois do almoço, iria condenar esta vantagem. E pensou, por um instante, em como seus paradigmas mudavam com freqüência.

Olhou pra ela, deitada ali ao seu lado, sonhando embaixo dos olhos num sono de fábula . Nua, coberta com o lençol que lhe moldava o corpo levemente arrepiado de frio. Na aurora matinal, a visão era romântica, sem o erotismo da noite anterior. Era cândida.

Ele acendeu um cigarro. Tragou uma vez e soprou em direção à janela aberta. Pousou o cigarro no cinzeiro sobre o criado mudo ao lado da cama e curvou-se em direção a ela. Beijou-lhe a nuca, em cima da tatuagem de ideograma japonês. Sentiu que a pele dela arrepiou, beijou de novo. Os ombros se encolhiam. Escutou um sorriso. Ela virou-se pra ele, olhos abertos, sorriso no rosto. Beijo de leve, nos lábios. Ela levantou e levantou ele junto.

Ele elogiou a parede laranja. Ela corrigiu: salmão. Quando ela tinha sugerido, ele achou que iria ser alguma coisa mais para rosa. Assim estava bem boa, ele disse. Ainda faltavam alguns móveis, quase todos, na verdade. Ela colocou um vaso com flores. Ele comprou uma antena pra televisão. Ela chamou ele pra sentar do lado, enquanto passava um seriado bobo na tv.

Ele achava lindo quando ela vestia uma camisa dele. E só isso. Abraçou-a e avisou que tinha comprado, também, sucrilhos e leite no dia anterior, pra ela tomar café da manhã, mesmo acordando às onze e meia. Ela achou bonitinho.

E o cigarro continuava queimando encostado no cinzeiro.

domingo, 12 de abril de 2009

Pacotão Série B

Tinha comprado o pacote do campeonato brasileiro. Por 50 reais ao mês, não perderia nenhum jogo do seu time. Iria abdicar de algumas cervejas, iria a pé ao invés de tomar ônibus, iria mandar menos torpedos pelo celular. Por seis meses.

A expectativa era que esses pequenos sacrifícios fossem suficientes. Se a coisa apertasse, miojo no almoço e no jantar. Mas valia a pena. Voltaria a acompanhar os jogos do seu time. Transformaria sua sala num camarote do estádio.

Mesmo de longe, estava por dentro da escalação, lia as notícias no site, ouvia reportagens na rádio online. Bendita internet! Mas, agora, nos jogos transmitidos na TV, poderia ver pelo quê estava torcendo exatamente. Agora, uma vez por semana, seu dia seria reservado para o seu time.

Na hora do jogo, um ritual particular. Telefone desligado. Bandeira pendurada na janela. Flâmula na mão direita. Camisa do último título vestida no corpo. As outras várias espalhadas no sofá.

E só ele na sala. Não queria torcedores emprestados, muito menos secadores. Se não era para ter seus irmãos-de-manto ao lado, não queria ninguém. Porta trancada.

Conseguia ver o jogo. Analisava o time. Discutia as jogadas. Xingava o juiz. Comemorava gols. Chorava derrotas. Mas não tinha a mesma graça.

Não tinha um desconhecido para abraçar pelo simples prazer de comemorar um gol numa euforia compartilhada pela massa. Não tinha alguém que conversasse do jogo – ou da história do time – e soubesse quem eram aqueles jogadores. A torcida era mais murcha ali naquela sala.

Mas era melhor assim do que sofrer a ausência de ver aquele time, mesmo pela TV, mesmo capenga, mesmo em má fase, entrando em campo. Aquele uniforme, aquelas cores. Era o dia que ele mais aguardava durante a semana inteira.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Literatura para principiantes

Adaptava clássicos para as massas. Fazia uma dona de casa apreender Joyce. Já tinha visto um cobrador de ônibus lendo sua versão de Crime e Castigo. Não eram adaptações declaradas, mas ele roubava as histórias dos clássicos e reembalava numa linguagem simples, acessível. Pobre, mesmo. Recortava as partes que mais lhe convinham da obra e lhes dava um teor mais sensacional - no sentido apelativo do termo.

Os críticos e acadêmicos lhe torciam o nariz, mas seus livros estavam vendendo bem. A edição simplória e de baixo custo facilitava o preço de capa a menos de 10 reais. A academia passava a discutir a função social daquele projeto de literatura. Pessoas que raramente liam alguma coisa estavam devorando livros. Sem saber, estavam até tendo contato com a mais alta estirpe da literatura mundial. Mas a dúvida era sobre a validade desse contato. Pior, sobre a nocividade.

Mas ele seguia seu caminho. O dinheiro entrava constantemente, como nunca antes em sua vida. E, escondido num pseudônimo, escondia também sua verdadeira identidade. Tinha uma fama que não utilizava. Até porque, no fundo, era também um intelectual. Para adaptar ao gosto popularesco obras de tal quilate, era preciso lê-las todas - e compreendê-las, a ponto de poder subvertê-las. Esse crédito a sociedade literata lhe negava. Sentia, sim, vergonha do que fazia, pois era, de todos, o que mais tinha consciência. Mas, mais que um intelectual, era um burguês. Mas não eram todos, afinal? Todos os intelectuais são obrigatoriamente burgueses.

Por outro lado, não assumir-se publicamente era uma ferramenta util para ampliar os negócios. Passou, agora como ele mesmo, nome, sobrenome e rosto, a criticar suas próprias obras, mas que pertenciam ao invisível senhor pseudônimo. Como crítico, era o mais rigoroso e o mais justo. Atacava inapelavelmente, sabia os pontos mais fracos. Conseguiu satisfazer-se como critico e, ao mesmo tempo, deixar seu produto mais rentável tendo mídia espontânea com frequência.

Foi contratado por uma revista de grande circulação nacional. Era o único capaz de criticar as versões fajutas dos clássicos com embasamento. Andou desconfiando que, na real, era o único que tinha lido aqueles livros de verdade.