quarta-feira, 25 de março de 2009

De mudança

Sentia no próprio organismo o peso da dúvida. Dores de cabeça constantes, insônia, ansiedade com taquicardia, nervosismo. Precisava tomar uma decisão e sabia que, o que quer que escolhesse, iria perder muito, sentir-se arrependido em uma série de momentos e aliviado em outros. Achava que já sabia o que queria, mas lhe faltava coragem também. E a covardia, que lhe fora sempre tão indesejada, agora era companheira.

Podia ficar em seu porto seguro, seu lar, o lugar onde conhecia todos os caminhos - e todos os atalhos. Sabia ir e vir, sabia se comportar na maioria das situações, gozava de algum prestígio e, era inegável, ali tivera muitas felicidades. De certo, as melhores de sua vida.

Mas também podia se mudar. Trocar de casa, ainda que não fosse nada muito radical aos olhos alheios, para ele seria uma mudança completa de paradigma. Deixaria o conforto daquele lar onde vivera por anos para abraçar uma realidade diferente, ter novas vistas de suas janelas, e alcançar novos - e promissores - horizontes. Mas, ainda, desconhecidos.

Conhecia outras pessoas que enfrentaram escolhas similares. Algumas foram, e se deram mal. Outras ficaram e também se deram mal. E havia os casos contrários. As estatísticas não iriam lhe ajudar a escolher. Precisava sentir as próprias vontades. Buscar em si o desejo de se jogar no escuro e tatear em busca de luz.

No fundo - mas cada vez mais raso - achava que iria se mudar, sim. O outro lado podia ser amedrontador, mas também era atraente. Onde estava, era tranquilo, gostoso. E ainda bem atraente também. Mas a vontade estava cada vez mais forte. Não tinha, necessariamente, inveja do outro lado. Mas tinha, acima de tudo, desejo de mudar.

Acordou decidido a pôr as malas no carro e pegar a estrada. Iria para o outro lado, atravessar fronteiras, e, até chegar, ia passar por muita coisa. Ansiedade e medo se misturavam aí. E era uma mistura, no fim das contas, excitante. Talvez precisasse disso um pouco mais na vida mesmo.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Retorno

Esteve ausente por um longo período. Passou por muitos lugares, quase todos bem longe dali. Conheceu pessoas, fez amizades, fez amor, fez inimigos, fez vontades e não fez muitas coisas das quais se orgulhasse. Talvez por isso estivesse voltando. E porque não tinha para onde ir.

Não sabia como iam reagir à sua volta. Achava que sua mãe ficaria feliz. Está no código genético das mães. Seu irmão iria lhe virar a cara. Seu pai, pouco lhe importava. Era como ele, e por isso um não tolerava o outro.

Os vizinhos talvez se incomodassem com a presença dele ali. Já não causava muita empatia quando estivera ali antes, quem dirá agora, depois de tudo. Se a notícia se espalhasse, certamente haveria represálias. Gente da redondeza querendo tirá-lo de lá. Iam acusá-lo, até, de desvalorizar o bairro. Aquele bairro imundo onde nascera e vivera tanto, e, ao mesmo tempo, tão pouco. Aos que sobreviviam naquele antro, a indiferença.

Chegou à rua com o sol nascendo. Reconheceu tudo como havia deixado anos antes, e isso lhe entristeceu. Sua casa só tinha as paredes mais descascadas. Alguns brinquedos de criança no quintal talvez evidenciasse novidades. Olhou o portão de ferro bambo. O velho cão olhava fixamente para ele por entre as madeiras da cerca. Não sabia se o cão não o reconhecia, ou o ameaçava. Será que até o cão lhe recriminava?

Olhou as janelas fechadas. Abstraiu-se no silêncio da manhã. As casas germinadas da vizinha; o sobrado e a série de casas sem reboco que iam até o fim da rua sem saída, um muro com dizeres ilegíveis, que ele mesmo havia pixado. Ainda ali. Só ele sabia o que estava escrito. Olhou com mais força e as manchas de sangue no muro tinham secado, mas não sem deixar sua marca gravada no concreto, como quem se recusasse a esmanecer jamais.

Recolheu-se, deu meia volta e desistiu de retornar àquela realidade na qual ele ainda se fazia presente. Em espírito e nas marcas indefectíveis que deixara. Esse fardo ele fizera todos carregarem ali, e que ele carregara com ainda mais pesar em seus anos na prisão. Não poderia sair de uma e entrar em outra. Ali, ninguém esqueceu.

segunda-feira, 9 de março de 2009

O herdeiro

Recebeu uma herança. Podia dar entrada num apartamento, nada muito grande, mas num bairro legal. Podia comprar um carro, melhor que o Escort Hobby 94 que ele insistia em colocar nas ruas, podia ter ar condicionado e travas elétricas. Uma viagem longa, pro exterior, com algum luxo, também era possível.

Não desejava a morte de ninguém, mas não podia negar que ficara, de certo modo, "agradecido" pelo dinheiro. Sentia-se mal com isso, mas pôs na cabeça que a melhor forma de homenagear o falecido e sua generosidade, era gastar bem a quantia herdada. A primeira coisa que fez, ao cair na conta, foi ir a um restaurante tailandês que já vinha namorando há algum tempo. Comeu um peixe desconhecido com um molho escuro de nome impronunciável, feito só de consoantes e um ou outro acento. E amêndoas.

Precisava decidir o destino do dinheiro. As frivolidades e pequenas extravagâncias do dia-a-dia, como o restaurante tailandês ou um terno Ermenegildo Zegna não chegavam a causar grande estrago nos números bancários. Mas, tinha consciência, não podia torrar tudo nisso, mesmo que garantissem quase um ano inteiro de luxo.

Procurou apartamento nos classificados. Chegou a fazer algumas visitas, mas nada empolgou, principalmente a falta de segurança de pagar o restante do financiamento. Viu alguns modelos de carro, importados até. Pesquisou e descobriu a taxa de desvalorização de um automóvel com apenas um ano de uso. Foi o bastante para esfriar a idéia de comprar o cabine dupla japonês.

Pensou em ações na bolsa, mas de inconstante já bastava ele. Não era de arriscar muito. Aplicou no banco, inicialmente, num investimento seguro, só que ligeiramente melhor que a poupança. Os rendimentos da herança permitiam um jantar elegante por semana, pra ele. Ou dois por mês, se acompanhado.

Decidiu tirar 10% da herança pra fazer uma viagem de cinco dias pra Buenos Aires. Ia dar pra se hospedar um hotel chique em Puerto Madero, comer bem, passear e fazer compras. Ficou mal acostumado. Resolveu pegar mais um tanto e dar uma esticada na Europa. Agora os gastos já tinham trocado a dezena da conta bancária. Tomou um susto no último extrato.

Foi procurar ajuda profissional. Contratou uma assessoria de investimento. Gente que tratava negócios como business. Desistiu deles no primeiro mês. Achou que não combinava com ganância. Percebeu que, no fim das contas, não combinava muito com dinheiro. Achou que tinha sina de pobre. Ficou com medo.

Foi ao psicólogo. Frequentou centros de tratamento, foi a palestras de auto-ajuda. Manteve a terapia por seis meses.

Curou-se. Não sabe ainda se foi por causa dos tratamentos, ou se por ter ficado sem dinheiro. Os honorários dos psicólogos estavam pela hora da morte.

sexta-feira, 6 de março de 2009

O homem com dois corações

Tinha dois corações. Num avanço incrível da medicina, o natural e debilitado servia para conter a alta pressão de sangue nos pulmões, fruto da hipertensão pulmonar. O transplantado iria bombear o sangue pelo corpo, coisa que o antigo não conseguia fazer por conta de uma miocardiopatia dilatada.

Viveu assim tranquilamente. Os corações batiam em ritmos diferentes, era divertido escutar o ritmo funkeado que os dois corações faziam em conjunto. Tinha duplicado a chance de infartar na vida, mas também podia pensar que tinha um sobressalente para emergências.

Mas os corações, mesmo unidos por um tubo, e trabalhando para o mesmo corpo e cérebro, eram corações diferentes. Um se apaixonou pela vizinha cuidadosa que lhe fazia canja nas noites de frio. O outro, mais antigo na casa, amava a ex namorada ainda. E, com o problema de saúde, ela passara a visitar mais vezes.

A miocardiopatia dilatada aumentava o tamanho do coração, dando mais espaço pro amor à ex. Mas, por outro lado, a doença enfraquecia o músculo. O coração novo era menor, mas tinha mais força pra impulsionar o amor pela vizinha caridosa.

O cérebro se via confuso porque liberava as substâncias ligadas ao amor e à paixão duas vezes ao dia, descontroladamente. Os olhos vidravam para duas pessoas diferentes, o corpo suava mais que o normal. Essa confusão corporal era caótica para os órgãos, mas ele até que gostava. Tinha as boas sensações do amor duas vezes. O frio gostoso na barriga, o sorriso bobo perdido no rosto. Tudo dobrado.

E ainda tinha uma excelente e convincente desculpa para ter duas mulheres ao mesmo tempo em sua vida.

domingo, 1 de março de 2009

O Craque - Parte II

Não imaginava que a recuperação seria tão dolorosa. Os meses nunca foram tão longos. As horas de fisioterapia lhe roubavam a alegria do resto do dia. Sua mãe e sua irmã vieram do interior para lhe fazer companhia. Algumas vezes perdeu a compostura, desobedeceu às ordens médicas, aos conselhos da mãe e à vigilância da torcida. Foi visto em boates, bebendo e fumando. Ser visto significava ser fotografado. Ser fotografado significava ser julgado e criticado. Às vezes, extorquido. Foi visto saindo de bordéis. Pagou caro pela não publicação das fotos a um reporter escroque de uma revista escrota.

Voltou a jogar aos poucos, já sem tanto alarde da imprensa. Entrou no segundo tempo nas primeiras partidas, sem conseguir desempenhar seu melhor futebol. Faltava-lhe ritmo de jogo e sobrava-lhe receio em partir pra cima dos adversários, entrar em disputas mais ríspidas de bola e tentar dribles mais ousados e desconcertantes.

Passou a ser questionado pela torcida e pela imprensa. Ficou arredio, dava respostas atravessadas nas entrevistas e pouco se relacionava com seus colegas de clube, "traíras", em sua opinião. Em uma entrevista, questionou publicamente o treinador por não escalá-lo. "Perdi minha vaga no time por um carrinho criminoso, fazia dois gols todo jogo. Agora tenho que ficar no banco de um cara que faz o goleiro adversário parecer maior que o gol. Mas a culpa não é dele, que Deus que fez assim, é do treinador que bota pra jogar."

Foi desligado do time principal e passou a treinar com o time B. Rebelou-se, disse que assim não vestia aquela camisa. Ameaçaram-no de processo, demissão com justa causa, e ele teria que pagar o valor da recisão. Orientado por seu empresário, fingiu contusão. A relação com o clube ficou insustentável. Dava seguidas declarações criticando o time, o clube, a estrutura, o treinador. Mas o clube não pretedia livrar-se do jogador gratuitamente, ainda tinha esperança que ele voltasse a ser um produto tipo exportação bem rentável.

Resolveram emprestá-lo para uma equipe de menor porte do interior do estado. No início, ficou irritado e desmotivado. Mas, na primeira entrevista como jogador do time caipira, perguntado se seu futuro seria nos times menores, disse apenas: "se não for o artilheiro do campeonato, me mato". Encerraram a coletiva. A frase drástica foi assunto em todos os jornais. Não deu mais entrevistas depois disso. Rendeu a polêmica que almejava, ele voltara a ser notícia. E iria usar o descrédito como motivação.

Seu time foi um mero coadjuvante no campeonato, mas ele, sem dar nenhuma entrevista mais, nem comparecer à nenhuma mesa redonda, foi o artilheiro do certame. Foi recolocado no time de ponta, com quem tinha contrato. Mas aquela camisa ele não vestiria nunca mais.

Continua.