sábado, 31 de janeiro de 2009

Cofrinho de Moedas

Dia após dia, ia colocando as moedas dentro da lata. Qualquer uma, qualquer valor, indiscriminadamente. Troco de ônibus, de supermercado, do cigarro, achadas na calçada, embaixo da almofada, no sofá. Qualquer moeda terminava repousando naquela lata verde-grená que certa feita fora de algum suplemento alimentar.

A lata já estava pesada. Às vezes se perguntava quanto já teria ali dentro. Já havia o quê, uns 2 anos e meio que juntava-as sem pestanejar? Mais ou menos isso. Muita gente já tentara demovê-lo da idéia, já tem tempo demais, ta na hora de gastar, qual é?!

Mas ele era mais forte que isso. E continuava em sua epopéia individual e sem destino. Não sabia onde ia parar. Sequer sabia aonde queria chegar. Simplesmente, ia. Análogo a como levava a vida, de modo geral.

Certo dia, fora pego desprevenido após um aumento na tarifa do ônibus. Passou a custar R$ 2,20. Puta que pariu, trazia exatamente uma nota de dois reais no bolso, o preço antigo. O cobrador não parecia muito disposto a fazer qualquer negociata. Em meio ao vexame do calote, a salvação veio na forma de um antigo colega do colégio que, entrando no ônibus no ponto seguinte, puxou do bolso da calça um punhado de moedas e, gentilmente, emprestou-lhe uma de dez e duas de cinco.

Um tanto encabulado, seguiu seu caminho no ônibus ao lado do camarada que poupara-lhe quatro quilômetros de caminhada sob o sol inclemente daquela terça-feira de verão.

Ao sair do ônibus, uma rápida passada no caixa eletrônico, a fim de evitar futuros vexames. Vinte reais. Tampouco podia dar-se ao luxo de esbanjar.

Sete reais no almoço do restaurante a quilo no térreo do prédio onde trabalha. Dois reais no chocolate fila do caixa para pagar pelo almoço. Saldo, 11 reais.

R$ 2,20 no ônibus de volta pra casa. Guarda os oitenta centavos para a lata. Saldo, 8 reais. Vai até a banca de revistas em frente ao ponto. DVD de Cães de Aluguel a R$ 5,90 num balaio em maio a pretensos sucessos sertanejos, filmes de Steven Seagal e coletâneas de Bee Gees. 10 centavos para a lata e saldo de 2 reais.

Resolve fumar um cigarro antes de entrar no prédio, talvez a zona mais anti-tabagista do mundo, graças ao síndico asmático. Puxa a carteira e descobre restar-lhe um mísero último cigarro.

Volta à banca de jornal para comprar um novo maço. Usaria as moedas mas não contaria ao confrinho. Contudo, descobre que o cigarro pelo qual pagava, até ontem, R$ 2,50, hoje passou a custar R$ 3,25. É a nova taxação, explicou o jornaleiro. E a inflação parecia ter dia marcado para subir todos os preços da cidade. Pelo menos todos os quais ele precisava gastar.

Faltavam-lhe 35 centavos. Três de 10, uma de 5; uma de 10, cinco de 5; sete de 5; uma de 10, uma de 25. Inúmeras combinações que ele não tinha. Depois de anos e anos de maturidade, via-se obrigado a voltar a comprar cigarro a varejo. Sentia-se um moleque. Derby ou Goudan, eram suas opções. Sentiu-se mais humilhado ainda, mais que no episódio do ônibus. Maldita agonia, maldita crise mundial, ou que razão existisse para dar conta desse inferno inflacionário que irrompia diante dos seus olhos. O mundo subindo de preço e faltava-lhe dinheiro para viver.

Voltou pra casa e a primeira coisa que fez foi arrebentar aquela maldita lata.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Última missão

Falhara.

Pela primeira vez, perdia um prazo. Atrasava. Não conseguia saber, exatamente, o que o impedira de cumprir com a tarefa acordada. Tinha alguma idéia, contudo.

Colocou a arma de lado e começou a avaliar se valia à pena continuar com tudo aquilo. Se esse atraso não seria um sinal de que deveria parar. Afinal, os paradigmas mudavam agora. Perdeu a qualidade que mais lhe orgulhava, de cumprir com a meta estabelecida. Se orgulhava de nunca ter falhado nesse ponto.

Mas, hoje, falhara. Já passava da meia noite e ele não havia executado a tarefa. Pior, começava a questionar, não só seus métodos e estratégias, como a validade daquilo tudo. Não sabia quem era o alvo de sua empreitada. Nunca soube, nunca quis saber. Gostavam disso nele. E ele gostava de ignorar. A ignorância era uma benção nesses casos.

Mas, agora, era diferente.
Ele era diferente.
Algo nele estava diferente.

Agora via mais claramente o que o tinha desnorteado na noite anterior, e feito com que atrasasse a consumação do fato. Um telefonema. Duas palavras. Um resultado.

Seria pai pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Velhice

Estava totalmente sem preparo físico. Nem de longe parecia o atleta que já fizera travessia a nado e que, seguidamente, completava a maratona. Um incômodo no joelho esquerdo lhe fazia boicotar a corrida. Uma queda, há alguns anos, numa calçada de pedras portuguesas meio soltas, lhe havia fraturado a bacia. Não tinha certeza, mas achava que ainda fazia um barulhinho irritante quando levantava a perna a partir de certa altura.

Estava mesmo velho.

Tinha um pouco de preguiça - e bastante medo - de ir ao médico. Os médicos sempre pareciam ver o pior nas situações, acreditava. Já iam mandá-lo fazer cirurgia, usar muletas. Se pegasse um açougueiro, capaz de querer metê-lo numa cadeira de rodas de vez. A preguiça era de lidar com isso tudo, convencê-los do contrário, argumentar com a família assustada e, por fim, desobedecer a todos. A rabugice justificada pela velhice lhe servia de salvo conduto para agir como quisesse.

O medo era de que eles estivessem certos. Todos. Em tudo.

Então ficava nesse dilema. E, enquanto isso, doíam o joelho e a cintura, que imaginava ser sequela do tal problema da bacia. Dor de velho. Era melhor ficar velho que ficar doente.

Desistiu dos exercícios. Comprou uma poltrona reclinável. Colocou na sala. Sentou-se, era a maciez que se imaginavam as nuvens. Reclinou-se, como se o próprio Deus lhe repousasse as costas nas mãos. Com o controle remoto, ligou a TV. A cabo. Futebol, seu time. E ganhando.

Nesse momento de paraíso pleno em si mesmo, pediu à esposa, com quem estava casado há 43 anos, uma cerveja. E podia morrer assim, sem nenhum diagnóstico desenganador, só com umas dores típicas da idade. Esse diagnóstico era dele mesmo, e bastava.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Mea culpa

Como ela podia ser tão egoísta? Só cobranças, cobranças, cobranças. Vai pra onde, com quem, que horas, até que horas, como, quando, por quê. Cada frase terminava com uma interrogação. E ele tinha certeza que vinham vários pontos de exclamação depois. Assim???!!! Assim mesmo.

Já nem se lembrava mais de como ou porquê a discussão começara. E, de repente, isso era o menos importante, uma vez que o percurso da discussão levou os dois a caminhos pouco saudáveis para o relacionamento. Gritos, resmungos, irritação. Estupidez.

Estava sem paciência. Não estavam os dois? Não podia continuar assim. Brigas quase diárias, agressividade, lamúrias. Qualquer coisa irritava. Os defeitos estavam cada vez mais intragáveis, as qualidades tornaram-se obrigação e rotina.

Que horrível. Não era a combinação mais feliz. E começou a recordar do porquê tinham chegado tão longe no relacionamento, o maior da vida de ambos. O sorriso, o prazer, a companhia. O sorriso pelo prazer da companhia. Cumplicidade. No olhar, no toque, nos gostos. O gosto, o cheiro, o tato.

A palavra certa na hora certa. A surpresa boa. Jantar fora, cineminha, ficar em casa, filme, seriado, programa de TV. As fotos na parede, as viagens. A paranóia de regime, rodízio japonês, tô gorda, tá linda!, um beijo, um abraço, um afago.

Comprou a dúzia de rosas mais bonitas e só tinha olhos pra dali pra frente. Era mais ela, mais com ela, mais, mais, mais.

E esperava que ela tivesse raciocínio semelhante, vez ou outra. Sabia que flores não durariam pra sempre.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O morto

Mataram um cara na frente do prédio. Um cidadão banido do morro que estava tentando voltar. Não deixaram subir nem 20 metros. Quatro tiros certeiros. Só ouviu os balaços da sala. Aquele medo cercado de dúvidas. Foi tiro? Bombinha de São João? Fogos? Bola batendo no portão de ferro? Uns minutos de expectativa por mais barulhos. Nada. Então não foi tiroteio.

E não foi mesmo. Execução pura e simples. Olhando pela janela, o corpo. Caído no chão, ensanguentado. Não se vê muitos detalhes do sexto andar, mas o suficiente para se constatar que há um homem assassinado na calçada oposta. Pouco tempo depois, parentes desesperados chegam, aos berros de um choro descontrolado. Sem pudor nem asco de tocar no corpo sem vida, manchando-se de sangue e lágrimas.

Do alto, distante e distanciado pelo vidro da janela, a visão não é repulsiva. A janela emoldura a cena e emula uma imagem de televisão. A respulsa é substituída por um certo fascínio mórbido. O impacto da visão já se perdeu em meio às doses de realidade avizinhada exibidas na TV. Nunca tinha visto um corpo morto antes, ao vivo. Mas do alto do sexto andar, e atrás da janela, o ao vivo parecia uma imagem do jornal.

Só o choro desesperado dos familiares parecia real. E era isso que angustiava mais.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Jantarzinho

Tinha comprado tudo. Queijos gorgonzola e brie pra servir de aperitivo, junto com um vinho português que dizia na embalagem ser armazenado em barril de carvalho. Não entendia nada de vinho, mas o fato de ser armazenado em barril de carvalho parecia uma boa tirada para impressionar logo de cara. Queijos e vinho de saída.

Para o prato principal, filé mignon com molho de nozes. Parece que era uma receita tailandesa. Encomendara num restaurante pretensamente oriental, sob a orientação de que tudo que precisaria fazer era esquentar por 10 minutos sob fogo médio. Isso ele conseguiria fazer. Acompanhando a carne, um tinto seco chileno que lhe fora recomendado pelo sommelier (ou talvez um mero maître) do mesmo restaurante. Esperava que à altura do prato principal o primeiro vinho, aquele envelhecido em barril de carvalho, já tivesse ido embora junto com a entrada. Obviamente, bebida fazia parte da estratégia.

Por fim, a sobremesa. Sorvete de papaya com cassis, a ex adorava e dizia ser afrodisíaco (ainda estava em dúvida do que vinha a ser, de fato, papaya. Cassis, já desistira de descobrir) e um licor de cacau. Mera degustação, afinal, a expectativa era que os dois vinhos anteriores já dessem conta.

Tic, tac, tic, tac, e gostaria que o relógio acompanhasse o ritmo acelerado de seu coração. Mas o tempo é senhor de tudo e lhe concedia ainda meia hora. Tempo pra se barbear melhor? Passar a camisa mais uma vez? Rever a limpeza das taças e as posições dos talheres?

Não, chega de paranóia. Nesse momento tenso que antecede o encontro, o ideal é dar uma distraída. Sentou no sofá e ligou o video-game. Winning Eleven, futebolzinho para relaxar.

Conseguiu chegar à final da Copa do Mundo. Nunca um cano viera em tão boa hora. Os queijos foram bons tira-gostos com a cerveja que repousava preterida na geladeira. O filé ficaria pro almoço do dia seguinte. O vinho do barril de carvalho e o seco chileno, guardou para envelhecê-los. E iria seguir o mesmo lema nos relacionamentos. Quanto mais velho, melhor. Ligaria para a ex esposa. Assim que ganhasse aquela bendita final de Copa do mundo.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Classificados de domingo

Andava atento. Olho vivo nas melhores oportunidades. Emprego, apartamentos, carros, promoções. Seus olhos corriam os jornais, em especial os classificados, como radares. Não precisava de um apartamento novo, não podia dirigir. Um emprego novo que pagasse melhor até que cairia bem. A sala podia receber uma mobília nova, quem sabe uma TV nova. Tudo dependida dos preços de ocasião que conseguisse achar. E estava tudo ali, no jornal de domingo. Um calhamaço de mais de 1kg de papel, no qual a maior parte eram anúncios. Adorava.

Apartamento 2 quartos, cozinha ampla, armários. Terreno 450m², próximo à rodovia. Corsa 2003, documentação ok, único dono. Técnico de informática, 2 anos de experiência comprovada, que possua carro. Loira, estilo gaucha, 21 anos, recém chegada, só hoteis.

Sentiu um comichão inédito ao passar os olhos pelos classificados a partir dali. Morena escultural, topa tudo. Ruivinha natural, ideal para executivos e casais. Adriana, seios fenomenais. Laís, goiana, especial. Tina, bronzeada, seios fartos. Carla, enlouquecedora. Bunda linda. Dandara, negra sexy e provocante.

Corpo. Seios. Linda. Fabulosa. Bunda. Swing. Especial. Anal. Gaucha. Casais.

Aos 9 anos, a primeira ereção.

Não tinha mais olhos para a TV de Plasma em promoção que receberia o videogame na sala; um emprego que pagasse melhor que os 10 reais que ganhava por lavar o carro do pai aos domingos: esqueça. O apartamento em que moravam estava ótimo, não precisava de um quarto só pra ele. Um carro... pra quê?

Agora, todo um novo mundo surgia. Um mundo democrático, onde conviviam todas as etnias. E todas tinham nome e telefone.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Clóvis e a intelectualidade

Clovis tinha uma coleção de filmes. Beirava os 200, em DVD. Ok, nem todos eram originais, mas qual o problema? O importante é que eram filmes. Tinha muito Kubrick, mas, para o mundo, seu cineasta favorito era Pasolini. Dos novos, só os asiáticos lhe ocupavam as prateleiras. Bom, no fundo, no fundo, ele nem sentia muito prazer em ver este cinema contemporâneo. Prazer mesmo, de assistir, era com Billy Wilder. Esses asiáticos, e Kubrick, e Pasolini, eram o cinema que ele gostaria de fazer. De ver, Wilder. Em segredo.

Livros, ele tinha uns 150 pelo menos, esses sim, sempre originais, ele não admitia essas xerox porcas que os universitários costumam fazer. Tinha algumas preciosidades realmente caras. Comprou uma vez num sebo uma edição de Os Miseráveis em francês datada do século XIX. Essa edição ele nunca leu, pra não esgarçar a costura das páginas. Leu Victor Hugo numa edição de bolso comprada por menos de quinze reais numa banca de jornal. Mas ele não se importava muito com essas frescuras. O importante era a obra. Capa dura, capa mole, papel gramatura alta, costura de linha de ouro, bobagens. O importante era a obra, e ele tinha pra lá de 150. E se orgulhava de ter lido praticamente todas. Boa parte, mais de uma vez. Mas ainda não lera nenhum Joyce. E não conseguiu terminar de ler Irmãos Karamazov até hoje. Esses pecados ele não conta.

Também era um amante de boa música. E ele sempre enfatizava: música! Não havia espaço pra voz, pra letra, pra nada que não fossem notas musicais originadas de instrumentos. Por isso, só música instrumental. Tinha um fraco por Vivaldi, mas não espalhava. Preferia pagar de admirador dos russos. Tchaikovsky, Rachmanioff. No fundo, sabia que era mais pose do que gosto. Mas não conseguia admitir que ainda se emocionava com as Quatro Estações.

O pior foi quando tentou alcançar no alto da estante um exemplar de Othelo, pra ler mais uma vez. Se apoiou na estante de DVDs, bem na parte da coletânea de Marilyn Monroe. Sabia que não devia ter entulhado tantos DVDs naquela estante fininha. A estante partiu e ele se desequilibrou e caiu no chão. Os DVDs cairam em cima dele. Bateu a cabeça numa cadeira que usava para empilhar alguns LPs de Bach que já não tinham mais utilidade - a vitrola já não funcionava há anos.

Agora não mexe nada além das pálpebras e de um dos dedos da mão esquerda. Ironicamente, “Quanto mais quente melhor” caiu em cima do seu peito, e tudo o que ele consegue ver é Um filme de Billy Wilder no alto da caixinha. E a edição de luxo de “Ulisses” está bem na beirada da estante. Um vento e ela cai, em cima de Clóvis.