sábado, 13 de junho de 2009

Sacrifício

Desceu e o porteiro lhe avisou que um apartamento tinha vagado, o 407. Ele não entendeu muito bem. O porteiro lhe lembrou que ele tinha pedido pra ser avisado tão logo aparecesse alguma vaga, pra um tio, primo, algo assim. Daí que ele lembrou da mentira que tinha inventado logo que se mudou, na esperança de trocar o seu próprio apartamento. Era vizinho de um casal maluco que brigava de faca e ameaçava assassinatos mútuos. Mas eles se mudaram e não deixaram saudades.

Agradeceu ao porteiro, mas disse que não tinha mais necessidade. Perguntou, por curiosidade, o motivo da mudança do tal apartamento. O morador do 407, seu Aurélio, faleceu, foi o que respondeu o porteiro. Enfartou, morava sozinho. A filha vinha quase todo dia visitar. Ontem ela chegou e encontrou o pai morto já.

Lamentou de forma automática a morte de um estranho próximo e despediu-se do porteiro. Ligou o ipod, pôs os fones no ouvido e saiu pela porta de vidro, descendo as escadinhas da entrada do prédio. Na calçada, amarrado à haste de ferro da lixeira, um cachorro, que olhou engraçado pra ele. Ele achou engraçado dar de cara com um cachorro bem na hora em que começava a tocar Hound dog do Elvis.

Fez tudo que tinha pra fazer na rua. Foi a bancos, fez pagamentos. Foi ao escritório, questões burocráticas pra resolver. Tinha uma vista bonita da janela, mas a cortina ficava fechada por causa do sol inclemente que batia ali à tarde. Saiu mais cedo, pegou um cinema e viu um qualquer coisa em cartaz naquele horário. Voltou andando e aproveitando o friozinho gostoso do começo de noite.

Chegou na entrada do seu prédio e deu com o cachorro ainda amarrado no mesmo lugar. O cachorro olhou pra ele e se levantou. Era um cachorro até bonito de tão esquisito. Ele deu um sorriso natural pro cachorro e entrou no prédio.

Enquanto esperava o elevador, perguntou pro porteiro quem era aquele cachorro ali fora. Era o cachorro do falecido morador do 407. A filha não quis levá-lo, tinha criança novinha em casa e morava num apartamento muito pequeno. Mandou largá-lo na rua, mas o cachorro não arredou da frente do prédio. Pra ele não entrar sempre que abrissem o portão da garagem, a síndica mandou amarrá-lo, enquanto tentaria entrar em contato novamente com a filha do morto.

Subiu pro seu apartamento pensando no triste desfecho que aquele cachorro acabaria tendo. A filha não ia mudar de idéia e, à síndica, não restariam muitas alternativas. Decidiu dar ao cão uma última refeição decente. Esquentou a carne moída que tinha comido no almoço e misturou com um arroz com lentilha há alguns dias guardado na geladeira. Colocou num pote velho de sorvete e pôs no elevador. Interfonou e orientou o porteiro.

Ligou uma música. Uma versão de Howie Day pra Help. Foi na janela, olhou pra calçada. O cachorro comia com gosto aquela gororoba cheirosa, a primeira refeição daquele dia. Ele olhou pro cachorro, que lambeu as paredes do pote. O cachorro olhou pra cima. Ele olhou pro cachorro. Escutou a música. Won't you please help me, help me. Olhou pro cachorro, que ainda olhava pra cima, pra ele, lá de baixo. Olhou pro cachorro, escutou a música, interfonou e mandou o porteiro subir com o cachorro que ele tinha umas toalhas velhas que ia colocar na área de serviço pro coitado dormir.

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