quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O velho e o moço

Andava na rua seguindo o mesmo caminho de todo dia. Era impressionante como andava sempre pelas mesmas calçadas, atravessava as ruas pequenas sempre nos mesmos pontos e ziguezagueava pelas mesas de bar na calçada num mesmo trajeto. Sempre com música nos ouvidos e mochila nas costas.

Entretanto, bem naquele dia, naquela hora, foi abordado por um velhinho. Magro, enrugado, cabelo ralo e branco polar. Bem vestido, com uma camisa de mangas compridas e um pulôver de lã. O velho o abordou com distinção. E ele tirou os fones do ouvido, para escutar o que aquele senhor que lhe lembrava Paulo Autran em alguma coisa na TV, tinha a dizer.

Tão logo após a educada abordagem, o velhinho explicou que não era dali, que era da baixada, e tinha caído doente há alguns dias. Acabara de sair do hospital público ali do bairro, e não tinha como pegar seu ônibus para voltar pra sua cidade. Também não tinha parentes ali a quem recorrer. Não explicou como ou porquê tinha ido parar na cidade. Mas reiterou que não tinha dinheiro pra voltar.

Só que, diferente do que imaginara, o velhinho não queria esmola. Não pediu dinheiro. Não lhe cabia esse papel. Precisava de dinheiro, e pretendia conseguí-lo. Mas, aos 80 anos, não se tornaria mendigo. Tampouco ladrão, obviamente. Porque o que lhe segurava na vida, ainda, era a sua dignidade. Sequer cogitou pedir o dinheiro a alguém. Resguardaria, eternamente, sua dignidade.

O velho segurou com as duas mãos no pulôver de lã. Gostaria de vendê-lo por 5 reais, para que pudesse pagar sua passagem na van intermunicipal. 5 reais pelo pulôver de lã que estava usando naquela manhã fria. 5 reais no pulôver do velho, pra que ele pudesse comprar sua passagem de volta pra casa. 5 reais.

Mas, com apenas uma nota de 20 na carteira, ele não fez nada. Disse ao velho que não podia ajudar, que estava sem dinheiro. Que sentia muito, e desejou boa sorte, disse que certamente ele conseguiria resolver logo seu problema. Na verdade, sua intenção era dizer tudo isso, mas certamente o velho não compreendeu as palavras que saíram emboladas de sua boca, tamanho o nervosismo com a situação que ali se apresentava.

Saiu. E em poucos metros já estava arrependido. Deveria ter dado os 20 reais inteiros para o velho, sem pulôver em troca. Agora, já estava achando até que deveria ter levado o velho até a casa dele, comprado remédios pro velho, deveria tê-lo salvo sabe-se lá do quê.

Mas só deveria ter tido um pouco mais de dignidade ele próprio, em face à dignidade em pessoa que estava a sua frente. Sentiu vergonha de si mesmo naquele dia.

domingo, 23 de agosto de 2009

As suas coisas

Voltou naquele dia. Abriu a porta de casa e entrou, sem acender as luzes, só com o que vinha do corredor. Arriou as malas e bateu a porta atrás de si. Um instante de negrume. Frio na espinha. Acendeu a luz da sala. Os móveis continuavam lá, no mesmo lugar. A revista que ele havia largado sobre o sofá ainda estava aberta na mesma página. Havia mais poeira no rack da TV e tinha a impressão que o mofo na parede havia aumentado um pouco. A cadeira estava desarmada, como quando ele saiu. Os eletrônicos fora da tomada, como ele deixou.

Tudo igual a quando ele partiu. Sentiu certo alívio. Deixou as malas na entrada e sentou-se no sofá. Mexeu na revista, fechou. Olhou a capa, já não se lembrava mais do que se tratava. Olhou mais um pouco o apartamento, se familiarizando com ele depois de uma temporada fora. Recostou-se no sofá e deixou o silêncio lhe trazer as lembranças, o cheiro e a vida ali de dentro. E ia se sentindo em casa de novo.

Levantou-se, ligou a TV na tomada e colocou num canal de música. Ia se sentindo mais leve. Olhou dentro do banheiro, o gás fechado. A espuma de barbear sobre a mesa - tinha se lembrado de fazer a barba minutos antes do taxi chegar para buscá-lo. Nada diferente de quando saíra.

Entrou no quarto. A cama desfeita, como ele sempre deixava de manhã. Caixas e sacos ainda encostados no canto do quarto a espera de uma arrumação mais definitiva. Abriu o armário. Suas roupas lá, com a bagunça organizada dele. Colocou os documentos que não usava no dia-a-dia, mas que tinha levado pra viajar, de volta na primeira gaveta. Abriu as duas últimas. Vazias.

E então o apartamento ficou completamente diferente de como ele havia deixado ao sair.

domingo, 9 de agosto de 2009

Em Face do Maior Encanto

Uma música “brega” tocando ao fundo, baixinho.

Um senhor que vem caminhando de longe, e sua imagem vai crescendo à medida que se aproxima do portão. Trajes formais, mas sem ostentação. Um chapéu na cabeça. Um portão baixo, bambo, prestes a romper-se de uma mureta igualmente decadente. O senhor, que não tem nome mas que surge como alguém em meio à paisagem árida e quente, passa pelo portão com a segurança de quem o conhece de outros tempos mais vigorosos. Caminha pelo jardim sofrido e alcança a porta de madeira de uma casa de paredes descascadas, mas que ainda conserva sua sisudez sertaneja.

O senhor abre a porta e entra, sem olhar para os lados. A música agora é totalmente presente. O senhor vai direto ao bar improvisado atrás de um balcão no meio de uma sala. Prateleiras com bebidas, conhecidas e desconhecidas, garrafas cheias e vazias. Paredes pintadas. Vermelho e branco. Pôsteres na parede. Anúncios de bebidas e mulheres. Um sinuca no outro cômodo, onde jogam dois sujeitos com ares rabugentos. Uma mulher de roupas provocantes bebe uma cerveja e os vê jogar sentada na mesa de bilhar. O senhor sequer os nota – ou não faz questão de notar.

Olhando para baixo, numa concentração misteriosa, apenas acomoda seu chapéu no balcão, a seu lado e, de soslaio, faz um breve sinal ao garçom, que prontamente lhe traz um copo com a cachaça mais pura que se pode arranjar num lugar como aquele. Copo na mão, um pingo para o santo. E o senhor bebe a cachaça num gole só, entre o prazer e o ardor do líquido escorrendo a garganta. Sem troca de olhares, o senhor faz um aceno com a cabeça, em agradecimento. Levanta-se. Pega seu chapéu e entra por uma porta de miçangas num corredor escuro.

A música brega continua dentro do corredor praticamente sem luz. Uma porta lateral entreaberta é a única fonte de luz ali. Pela fresta, vê-se uma mulher de bruços. Rosto e braços. Transa com um homem que não se vê – nem ela mesma. Rangidos da cama. Respiração ofegante – do homem. O senhor, impassível, encosta a porta. Breu. O senhor segue andando no escuro. Ao final do corredor, abre uma porta. Luz. Dentro do quarto, pés descalços de uma menina na cama.

O senhor abre a porta e entra. Uma menina que aparenta em torno de 14 anos está deitada na cama. Nua. Virginal. Cabelos compridos. Inocência. A menina olha para o senhor, que retribui o olhar. Inexpressivos, os dois. O senhor fecha a porta atrás de si, sem parar de olhar a menina. Ao bater da porta, a menina vira-se de lado, dando as costas ao senhor. Como se dormisse. Mas tem os olhos abertos. Atentos. Expressivos. Atrás, o senhor a observa, ainda parado em frente à porta fechada.

O senhor tira seu chapéu e o acomoda numa mesinha de vime postada ao lado da porta, sob alguns quadros de natureza morta. Senta-se na cama ao lado da menina. Ligeiro rangido de madeira velha. Senhor observa a menina nua deitada ao seu lado, de costas para ele. Olhos abertos, os dois. O velho passa os dedos pelo contorno lateral da menina. Hesitante. Impressionado. Olhar expressivo. Olhos abertos, a menina. Expressivos.

O senhor tira os próprios sapatos, meias. Acomoda-os, lado a lado, junto à cama. Desabotoa a camisa social. Tira o cinto, enrolando-o sobre o criado mudo. Abaixa as calças com a cueca. Dobra e coloca sobre os sapatos. Tira a camisa social, pendura no encosto da cama. Nu. Deita sua nudez ao lado da menina. Barriga para cima. Olha para o teto. Sua nudez velha contrastando com a juventude desnuda e inocente da menina. Rugas, pelancas, pelos. Pele, poros, pelos. O velho deitado, barriga pra cima. Menina deitada de lado. Olhos abertos. Duas nudez.

É de manhã. A menina está deitada, nua, na mesma posição. Olhos fechados. Dorme tranquilamente. Intocada. Sozinha na cama. O velho não está.

No banheiro, o velho está sentado na privada. Nu. Segura a cabeça com a mão, segurando a própria dor. Respira fundo. Aperta os olhos, comprimindo a própria dor. A cachaça que sai com o mesmo ardor com que entrou. Pingo a pingo, vermelho sangue.

A menina dorme na cama. Sozinha. Sono angelical. 14 anos. Dorme a mesma nudez. Infantil. Intacta. Vira-se na cama. Ainda dorme. Mesmo com o barulho de uma descarga vindo do banheiro ao lado.

Descarga acionada pelo velho. Seu esforço tragado cano abaixo, sangue e urina. A dor aos poucos vai amainando. O velho lava as mãos na pia. Olha-se no espelho. Velho. Ainda mais velho.

Terminando de vestir-se, no quarto, o velho não olha mais a menina, que ainda dorme nua na cama. Para ela, é cedo. O velho recolhe seu chapéu. Sai do quarto, levando-o na mão.

Do lado de fora da casa antiga, sob um céu nublado, o velho passa pelo portãozinho da saída prestes a cair. Caminha com o chapéu na mão para o longe. Velho.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Pedestre

Decidiu não parar em nenhum sinal vermelho. Era pedestre, é bom ressaltar. Saiu da estação de metrô e prometeu a si mesmo não esperar na faixa. Se permitia acelerar ou retardar o passo, mas nunca parar. Teria três ruas a atravessar pela frente.

Atravessou a primeira rua com certa facilidade. A rua em frente a estação de metrô não era muito movimentada. Mesmo com sinal aberto para os carros, passaram ele e uma mulher com um carrinho de bebê.

A segunda rua parecia ser mais desafiadora. Ele foi com passos firmes, mas já olhando para a rua, antevendo os futuros movimentos. Acelerou o passo para chegar na metade da faixa, calculando o espaço entre um Pálio cinza lento e um Vectra mais acelerado. Passou na frente do pálio e reduziu o passo para que o Vectra passasse por ele. Depois acelerou novamente para evitar o Corsa que vinha logo atrás e lhe soltou uma buzina generosa. Por fim, ainda precisou dar um pulo no susto pra desviar de um maldito entregador de supermercado.

Seguiu pela calçada de uma rua estreita que fazia a ligação com a próxima rua que deveria atravessar. Preparou-se para uma corrida frenética pois uma avalanche de carros se prenunciava adiante na rua, oriundos de um sinal recém tornado verde. Botou o primeiro pé na faixa e preparou o impulso.

Os carros pararam. Um a um, foram freiando de leve e aguardando que ele atravessasse a rua. Ele só percebeu a situação quando já estava na metade da faixa, numa corrida cega e desengonçada. Não conseguiu evitar que parasse e observasse a situação, incrédulo. E, assim, perdeu a aposta consigo mesmo.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Vida

Andava pela rua com o ipod no ouvido. Naquele dia, andava distraído. Tinha viciado numa banda nova, recém descoberta na trilha sonora de um filme de Tarantino. Andava sem pressa, mas obstinado a chegar em casa. Parou na faixa, olhou o sinal. A mãozinha vermelha piscando. Seguiu em frente, apertando o passo. No meio da faixa, a música parou. Ele se espantou e, por um instante, hesitou no andar. Ao mesmo tempo, o sinal fechou para os pedestres e abriu para os carros. Ouviu uma buzina estridente de um chevete velho que lhe esperava passar. Odiava buzinas. Indignado, mostrou o dedo médio e mandou o filho da puta tomar no cu.

Terminou de atravessar a rua. A porta do chevete velho parado no sinal se abriu e o motorista saiu do carro, armado com um revólver na mão. Ele só teve tempo de olhar e arregalar os olhos. Bum, um tiro na cabeça. O tiro abafou o xingamento do homem.

Girou sobre os pés e foi caindo em câmera lenta, vendo o atirador soltar um último palavrão. Caiu no chão, ainda com os olhos abertos, vendo o motorista encará-lo com olhos vidrados.

Essa queda não durou 1 segundo.

Mas, nesse segundo, ele pensou o quanto estúpido era morrer por uma troca de xingamentos no trânsito. O quão tolo era morrer vítima de um troglodita assassino. O quão vergonhoso seria quando os pais soubessem que ele morreu porque deu dedo para o cara errado. O quão em vão seria morrer com uma bala na cabeça na calçada daquela rua insignificante do bairro.

Decidiu que não ia morrer assim. Quando do impacto do seu corpo com o chão, já estava decidido a se levantar e resolver essa pilhéria. E foi o que fez. Caiu e levantou-se. O motorista se assustou, ainda com a arma em mãos, com aquele corpo ensanguentado que vinha pra cima dele com fúria. Ele pegou o motorista pelo colarinho - e era um homem bem mais corpulento que ele - e entortou-lhe o braço que segurava a arma. O motorista deixou a arma cair. Jogou então o motorista contra o capô do carro e apertou seu rosto na lataria, escaldante naquele dia de sol.

Nisso chegou a polícia e uma ambulância. Transeuntes e moradores da área se aglomeravam, assistindo à confusão. A polícia se encarregou do motorista, um fugitivo com alguns mandados de prisão nas costas. Os médicos foram checá-lo. Ele disse que fora só um tiro de raspão. Não quis ir pra hospital nenhum. Enxugou o sangue no rosto, apenas, já que a ferida já não jorrava mais, e saiu dali, sentindo-se forte e disposto.

As coisas, a partir desse dia, pareciam melhorar. Seu ipod voltou a funcionar. Sua namorada o procurou, buscando uma reconciliação. Foi efetivado no estágio. Seu time saiu da zona de rebaixamento na reta final do campeonato.

Estava levando a melhor vida que podia imaginar. Parecia um sonho. E quando a vista começou a ficar turva e ele começou a ouvir vozes estranhas a todo momento, descobriu sua real situação. E escolheu permanecer, e lutar, não sabia como, pra não sair do coma.

sábado, 20 de junho de 2009

Extravio

A atriz do seriado de terça a noite estava no vôo. Às 11 da noite, usava óculos escuros e lenço no cabelo, num disfarce extremamente chamativo. Ele ficou olhando pra ela, primeiro na diagonal que seus assentos permitiam. Depois, na esteira das bagagens, quando chegou mais perto.

Ela era bem bonita, como na televisão. Sem o sofrimento de butique nem os diálogos sofríveis, parecia ainda mais atraente. Escutava seu ipod, agora com os óculos escuros já no topo da cabeça, com indiferença para o resto do mundo. Normal, ele também fazia o mesmo, inclusive para evitar conversas indesejadas com estranhos altamente simpáticos que sentam ao lado na fileira de poltronas do avião.

Observou de soslaio a atriz enquanto esperava sua própria bagagem. Ela olhava para o celular com uma freqüência grande, apesar da discrição com que executava os movimentos. Discrição insuficiente para enganar a observação firme, e ainda mais discreta, dele. Além da impaciência, ou com as horas – cedo ou tarde? – ou com alguma ligação – a fazer ou a receber? – a atriz sentia pesada sua bolsa. Por três vezes fez breves movimentos para acomodá-la no chão, mas desistiu todas as vezes. Trocou a bolsa de ombro duas vezes.

Com a demora da mala em surgir, ela tirou os fones do ouvido e desligou o ipod. A música parecia estar deixando-a mais nervosa com o andamento das coisas. Olhou o celular de novo. Olhou o monitor, conferiu o número do vôo e a companhia. Corretos, ambos.

Ele chegou mais perto da atriz. Procurou não demonstrar familiaridade com o rosto dela. Com sutileza, abordou-a e perguntou se ela também não recebera as malas. No momento em que a última sílaba saia, ele já notava a pergunta estúpida que fizera. Logo emendou um complemento, dizendo que também não tinham chegado as suas, e que iria reclamar naquele momento. Convidou-a a acompanha-lo. Ela sorriu e o seguiu.

Ele comentou que já era a terceira vez que isso lhe acontecia. Ela ficou surpresa, era sua primeira. Ela deixou escapar que a sorte dela era que ele já estava escolado nisso e seria de grande ajuda. Riu constrangida do comentário. Ele riu também, ela relaxou.

Ele se apresentou, ela também. Só mencionou o primeiro nome. Apertaram as mãos. Chegaram no guichê de bagagens extraviadas e ele assumiu o controle a partir dali. Ela não assistiu à cena. Saiu de lado e foi telefonar.

Ela voltou meia hora depois. Ele já tinha resolvido tudo e só a esperava, já fazia quase quinze minutos. As malas haviam viajado, só que foram alocadas num compartimento do bagageiro da aeronave que não chegou a ser aberto no desembarque por um erro operacional.

Ela agradeceu e se despediu, dessa vez com dois beijinhos. Ele sorriu de volta e, antes que pudesse tentar qualquer outro contato, ou galanteio, ela já saia apressada puxando sua mala de rodinhas pelo saguão e novamente fazendo uma ligação do seu celular.

Por algum momento, ele achou que viveria uma cena de filme com a atriz famosa da tevê. Mas, nem para os amigos mais chegados, iria admitir: pensou que era outra pessoa. Aquele nome dela não soou muito familiar.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Ah, os anos 50

Por culpa de um estranho acidente doméstico envolvendo eletricidade e uma forte queda, ele foi parar no início dos anos 50. Acordou meio confuso, mas de cara já viu a decoração retrô - para ele - do quarto. Saiu de lá ainda tonto e, na sala, encontrou uma festinha. Muito gel, muita saia rodada de bolinha, cintura marcada, sapatinhos, camiseta dobrada no braço. Os meninos de James Dean, as meninas de Doris Day. Não eram muitos, mas estavam animados.

Alguém o abordou curioso. Perguntaram a respeito do seu pijama. Perguntaram por que ele tinha brincos na orelha e na sobrancelha. Um garoto perguntou se ele era fruta. Uma menina cochichou com a outra que eram pontos cirúrgicos. Ninguém gostou muito.

Ele confirmou em que ano estavam. 52. As pessoas acharam que ele estava usando algum alucinógeno. Um cara tentou descolar algum com ele. Quem era o presidente do Brasil? Getúlio. Que engraçado. Ele ainda está vivo, pensou alto. E a moçada se entreolhou. Era estranho estar num tempo em que o Brasil nunca tinha sido campeão mundial de futebol. Estava, aliás, mais perto do maracanaço que de 58.

Começou a se entrosar. Expôs suas teorias baseadas nas verdades futuras que impressionaram um pouco. Avisou pra ninguém botar muita fé em Getúlio que as coisas iam feder no Catete. Disse ainda que o Rio deveria deixar de ser capital, que o Brasil deveria interiorizar os seus poderes. Alguns acharam uma boa, outros acharam uma bosta. Ele foi além e deu uma idéia de um nome para uma possível capital do Brasil: Brasília, que deveria ser construída no meio do planalto central, totalmente planejada. Riram dele.

Até que alguém veio com um violão. Ele vislumbrou aí a chance de atrair toda a atenção e popularidade que sempre sonhara. Em toda sua vida, nunca fora destaque. E agora, mais de cinquenta anos atrás, tinha sua chance. Pediu o violão que estava sendo entregue a um baixinho de óculos e emendou a novidade para aqueles jovens provincianos: rock'n roll. Primeiro atacou de Beatles, e viu a galera se ouriçar. Mandou Elvis, fez dancinha e rebolado. A moçada enlouqueceu. Foi além e arriscou um Nirvana. Aí foi longe demais, ninguém entendeu nada e não agradou. Voltou atrás, mais Beatles. Sucesso.

Viu que era por aí. A popularidade não viria com papos de política. Investiu na cultura pop. Começou a contar uma história de ficção científica. Um mundo paralelo, onde pessoas com dons especiais, os cavaleiros jedis, travavam uma batalha contra o lado negro da força. Contou das naves, dos sabres de luz, da transformação de Anakin em Darth Vader, da relação dele com Luke Skywalker. Prendeu a atenção de todos. Antecipava Guerra nas Estrelas em 25 anos e surpreendia a platéia a cada lance.

O baixinho de óculos que tocava violão chegou pra perto dele e pediu que lhe ensinasse aquela levada, aquele ritmo. Claro, chega aí. Como você se chama? O baixinho sentou do lado dele, sempre falando baixo. João.

Depois escutou um garoto de não mais que 13 anos dizer que precisava contar aquela história no cinema. Que tinha visto Metropolis e achado incrível, e que aquela história de lasers, guerras intergaláticas e heróis e vilões daria um filme perfeito. Ah, nunca você iria conseguir fazer de um jeito bom, Gláuber, agouravam alguns. Isso é pura fantasia.

Então ele começou a perceber onde estava. O baixinho de óculos se chamava João Gilberto. Gláuber Rocha era a criança encantada por Guerra nas Estrelas. E havia outros ali. Reconheceu Jorge Amado fumando na janela e tentando inventar uma história de robôs, Chico Buarque tentando tirar Beatles de ouvido, Oscar Niemeyer cismando em desenhar os bonecos do filme de guerra estelar de Glauber. Chegou a dizer "arquitetura é um saco, é tudo art nuveau nessa cidade. Vou fazer quadrinhos!"

Em uma festinha, ele tinha arruinado com as futuras manifestações artísticas mais famosas do país. Tinha que consertar. Chegou em João Gilberto com o violão e começou a lhe ensinar a batida da bossa nova. João olhou com atenção. Porra, chato pra caralho isso aí. Manda de novo aquela agitada do rebolado!

Tentou depois contar pra Glauber uma história de sertão. Antônio das Mortes era o personagem. Falou do cangaço, apelou pras raízes baianas dele. Nada. O pequeno Glauber só queria saber mais de robôs, Jedis e se Han Solo podia ter sabre de luz sem ser Jedi.

Ele acabou com a Bossa Nova, extirpou o Cinema Novo de seu cineasta mais ilustre e lançou um roqueiro que canta baixinho e um George Lucas terceiromundista para a cultura brasileira.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Companhia

Ele saiu do banho e não a encontrou no quarto. Procurou na sala e nada. Começou a se preocupar. Subiu até o terraço. Encontrou ela lá, encostada no parapeito, olhando um olhar perdido pro horizonte da cidade, que daquela altura era só uma massa disforme de cores e luzes, sem foco e sem direção. Vestia um moletonm dele por cima da camisola. O inverno mostrava sua cara naquela noite fria de junho.

Ela chora de mansinho enquanto bebe algo quente numa xícara. Ele sai no terraço de pijama mesmo e abraça ela por trás, carinhoso, beijando na orelha e na nuca. Ela sorri um sorriso tristonho. Ele traz ela pra dentro da cobertura e fecha a porta, espantando o frio.

Ele deita ela no sofá e pega a xicara. Cheira e o cheiro lhe queima a narina. No aparador do lado, uma garrafa aberta, e pela metade, de uísque. Ele senta no sofá e acomoda a cabeça dela no colo. Passa os dedos entre os fios de cabelo dela. Ela começa a chorar.

Ele sente no choro dela o seu próprio choro contido, numa força que ele não sabe se tem, mas que é necessária pra não fazê-la desmoronar. Ele é cúmplice na dor mas tenta não aparentar pra ser estímulo à recuperação. Isso só faz a sua própria dor latejar ainda mais. Não se contém e chora. Ela o abraça firme. A verdade é que lhe faz melhor saber que ele compartilha do mesmo sofrimento que ela. Sente ali o companheiro. Na alegria e na tristeza.

sábado, 13 de junho de 2009

Sacrifício

Desceu e o porteiro lhe avisou que um apartamento tinha vagado, o 407. Ele não entendeu muito bem. O porteiro lhe lembrou que ele tinha pedido pra ser avisado tão logo aparecesse alguma vaga, pra um tio, primo, algo assim. Daí que ele lembrou da mentira que tinha inventado logo que se mudou, na esperança de trocar o seu próprio apartamento. Era vizinho de um casal maluco que brigava de faca e ameaçava assassinatos mútuos. Mas eles se mudaram e não deixaram saudades.

Agradeceu ao porteiro, mas disse que não tinha mais necessidade. Perguntou, por curiosidade, o motivo da mudança do tal apartamento. O morador do 407, seu Aurélio, faleceu, foi o que respondeu o porteiro. Enfartou, morava sozinho. A filha vinha quase todo dia visitar. Ontem ela chegou e encontrou o pai morto já.

Lamentou de forma automática a morte de um estranho próximo e despediu-se do porteiro. Ligou o ipod, pôs os fones no ouvido e saiu pela porta de vidro, descendo as escadinhas da entrada do prédio. Na calçada, amarrado à haste de ferro da lixeira, um cachorro, que olhou engraçado pra ele. Ele achou engraçado dar de cara com um cachorro bem na hora em que começava a tocar Hound dog do Elvis.

Fez tudo que tinha pra fazer na rua. Foi a bancos, fez pagamentos. Foi ao escritório, questões burocráticas pra resolver. Tinha uma vista bonita da janela, mas a cortina ficava fechada por causa do sol inclemente que batia ali à tarde. Saiu mais cedo, pegou um cinema e viu um qualquer coisa em cartaz naquele horário. Voltou andando e aproveitando o friozinho gostoso do começo de noite.

Chegou na entrada do seu prédio e deu com o cachorro ainda amarrado no mesmo lugar. O cachorro olhou pra ele e se levantou. Era um cachorro até bonito de tão esquisito. Ele deu um sorriso natural pro cachorro e entrou no prédio.

Enquanto esperava o elevador, perguntou pro porteiro quem era aquele cachorro ali fora. Era o cachorro do falecido morador do 407. A filha não quis levá-lo, tinha criança novinha em casa e morava num apartamento muito pequeno. Mandou largá-lo na rua, mas o cachorro não arredou da frente do prédio. Pra ele não entrar sempre que abrissem o portão da garagem, a síndica mandou amarrá-lo, enquanto tentaria entrar em contato novamente com a filha do morto.

Subiu pro seu apartamento pensando no triste desfecho que aquele cachorro acabaria tendo. A filha não ia mudar de idéia e, à síndica, não restariam muitas alternativas. Decidiu dar ao cão uma última refeição decente. Esquentou a carne moída que tinha comido no almoço e misturou com um arroz com lentilha há alguns dias guardado na geladeira. Colocou num pote velho de sorvete e pôs no elevador. Interfonou e orientou o porteiro.

Ligou uma música. Uma versão de Howie Day pra Help. Foi na janela, olhou pra calçada. O cachorro comia com gosto aquela gororoba cheirosa, a primeira refeição daquele dia. Ele olhou pro cachorro, que lambeu as paredes do pote. O cachorro olhou pra cima. Ele olhou pro cachorro. Escutou a música. Won't you please help me, help me. Olhou pro cachorro, que ainda olhava pra cima, pra ele, lá de baixo. Olhou pro cachorro, escutou a música, interfonou e mandou o porteiro subir com o cachorro que ele tinha umas toalhas velhas que ia colocar na área de serviço pro coitado dormir.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Olhares

Transaram de quatro. Para não cruzarem o olhar e se lembrarem da merda que estavam fazendo. Pra ela não olhar pra ele e lembrar da amiga sacana em que se transformara. Pra ele não olhar pra ela e reconhecer o cafajeste que vinha sendo há alguns meses, alimentando uma traição iminente. Apesar da certeza da sacanagem, não iam parar. Naquele momento, e em todos os subsequentes, iam evitar pensar nisso o quanto pudessem. E eram bons nisso.

Terminaram o sexo. Ela deitou de bruços, ele deu uns beijos nas costas dela, até o pescoço. Daí levantou-se e foi pra cozinha beber uma água. Ela não gozou, mas achou boa a transa. Melhor do que geralmente era com seu ex-namorado. Virou-se na cama e viu a foto da esposa dele na mesinha. Não eram melhores amigas, mas eram próximas. Conviviam muito juntas no trabalho, mesmo atuando em áreas diferentes. Em festas, costumavam contar certas intimidades uma à outra, com o advento do álcool.

Ela pensou isso tudo em uma fração de segundos. Levantou, procurou a calcinha. Vestiu. Procurou todo o resto de suas coisas e aprontou-se para ir embora. Ele, da cozinha, ouviu a movimentação e gritou se ela queria água. Ela não gritou de volta. Foi até a cozinha e disse que não, e que estava indo. Ele disse tudo bem, apanhou um short no varal e a acompanhou até a saída. Na porta, o olhar deles se cruzou pela primeira vez desde que foram pra cama. Era um olhar de cumplicidade. Não iriam comentar nada com ninguém. Muito menos entre eles. Pacto selado. E velado.

Seria melhor assim, e seria por algum tempo, até enjoarem. Porque ninguém iria descobrir, não havia sentimentos que denunciassem. Não havia obsessão. Só um tesão satisfeito eventualmente. Sem frustrações. Nunca se envolveriam. Ele achava ela uma piranha, ela achava ele um escroto. E viviam essa fantasia um para o outro, alimentando seus desejos mais escusos.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Luto

Veio enterrar o pai. Doze horas de vôo, oito horas em terra, quatro delas num cemitério, e outras doze horas no ar. Seu pai vinha doente, um câncer de esôfago que havia se propagado para vários outros órgãos. Metástase constatada, o médico lhe dera três meses. Com um, a internação severa. Não duraria dias.

Então ele voou no primeiro avião. Pagou a tarifa mais cara de um dinheiro que não tinha. Precisava enterrar seu pai.

Chegou de manhã cedo. A morte acontecera quinze minutos depois que ele havia entrado no avião e desligado o celular. Ao pousar, foi recebido pelo motorista da família. Era o primeiro sinal. Com o percurso diferente do habitual, percebera sozinho a verdade que o motorista não se sentia à vontade para lhe contar. Foram direto para o cemitério. O velório acontecia desde a noite anterior. A família estava reunida, à sua espera.

Tinha prometido que não iria retornar somente nesta situação, quando saiu. Mas não conseguiu cumprir a promessa. Parte por sua culpa e inesgotável afã pela carreira; parte pela teimosia do pai em apressar esse momento nuns bons cinco ou dez anos, fumando dois maços por dia desde a mocidade.

Recebeu as condolências com inegável educação e velado constrangimento. Não reconhecia quase ninguém após tantos anos, e sentia, além da tristeza pela perda, uma dor de certa culpa. Como se uma silenciosa inquisição o condenasse por ter abandonado a família, a cidade, o país.

Até que sua mãe pegou em sua mão e enconstou-a contra o próprio peito, e ele sentiu aquele coração cansado bater mais forte naquele momento de dor. A mãe estava enlutada à alma, mas um fiapo de luz surgia num sorriso quase imperceptível de quem revê o filho após muito tempo, sem importar o porquê.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Amanhecer

Acordou com o braço dormente. O braço direito, que tinha dormido embaixo do pescoço dela. Percebeu que o braço estava dormente quando tentou levantá-lo e trazer pra perto da barriga, e ele não veio. Ia levantar o braço porque ela já não estava mais deitada lá.

Na primeira vez que isso aconteceu - o braço ficar dormente - ele ficou lívido com o susto. Agora, já conhecia a situação. Com a mão oposta, esfregou o braço dormente. Primeiro um formigamento gradativamente crescendo, uma ligeira queimação com a circulação se normalizando, e então o relaxamento e a retomada dos movimentos. Um pouco dolorido por um tempo, até os músculos se reacostumarem com a condição.

Não viu as roupas dela no quarto. Tinha uma vaga lembrança do vestido ter caído no chão, em frente à porta, dos sapatos terem sido jogados pro canto e da calcinha largada displicentemente no pé da cama. Pois o dia amanhecia sem nada disso em seu quarto. Mas, sim, com uma pilha sobre a cadeira do computador, com um travesseiro, uma fronha já retirada e dobrada, e um edredom com ideogramas japoneses, porque ela sentia muito frio na madrugada, sobretudo nua. Ele, não. Dormira apenas sobre o lençol que forrava a cama e cujos elásticos já haviam se soltado das pontas do colchão.

Não conseguiu esconder - e tentou, mesmo que não houvesse ninguém mais lá - uma certa tristeza. Se dormir junto havia sido prazeroso (e, aqui, se referia, de fato, a dormirem juntos. Aquela noite fora a primeira em que isso acontecia após o sexo), acordar teria sido ainda mais entusiasmante. Pensou.

Levantou um pouco trôpego pelo sono e pelo vinho da véspera. No piloto automático, a ida costumaz ao banheiro. No espelho, viu que trazia olheiras mais vivas. Ou mais mortas, como a elas convém mais apropriadamente adjetivar. Podia fazer a barba, como sua mãe insistia. Ou deixar assim, calculadamente mal-feita, o que dava ainda mais trabalho, mas que ela, ao contrário de sua mãe, gostava muito. Dizia que dava um comichão gostoso nos beijos. Todos. E ele desistiu do espelho.

Ouviu então o estalo da torradeira. E viu a mesa da cozinha posta pra dois. Não tinha café, esquentei leite com nescau, ela disse, puxando a cadeira pra ele sentar. Voltou do fogão com dois ovos fritos, um pra cada, com um par de torradas. Foi beijá-lo, ele ofereceu os lábios fechados, não tinha escovado os dentes ainda. Ela não se importou, e não foi ruim.

E ela, como ele, ainda estava nua, coberta apenas com a camisa que ele se recusou a vestir como pijama na hora de dormir, ontem. As roupas dela estavam cuidadosamente dobradas e guardadas na gaveta do armário dele.

sábado, 16 de maio de 2009

Aeroporto

Estava no saguão do aeroporto com seu laptop à tiracolo. Todas as tomadas que tinha conseguido achar já estavam ocupadas por outros passageiros usuários de laptops. Estava usando o seu na bateria - que já estava perto do fim - na expectativa de que alguma das tomadas em que estava de olho fossem desocupadas, a tempo dele plugar o seu notebook e dar uma carga, para que conseguisse usar, também, no avião.

Faltavam quinze minutos para o início do seu embarque, e a cada minuto que se passava, tinha a sensação de que todos os outros passageiros usuários de laptop que ocupavam as tomadas do saguão de embarque eram, também, passageiros do seu mesmo vôo.

Perdeu um pouco a paciência com um sujeito que tinha ligado seu laptop apenas para ouvir música. Uma péssima música, aliás. E sem fones, como se todos ali precisassem escutar aquilo. Pensou em oferecer seu ipod para que o cidadão escutasse músicas sem ocupar uma tomada. Músicas melhores, inclusive. E com fones. E, assim, graças ao passageiro usuário de laptop que o usava apenas para escutar música, descobriu que tinha esquecido seu ipod.

Então viu um de seus alvos se levantar – e liberar uma tomada. Tinha sentado num local estratégico, de onde tinha visão panorâmica do saguão e facilidade de locomoção para quatro assentos vizinhos a tomadas. Assim, foi fácil ser o primeiro a chegar no disputado local. Tinha certeza que outros também visavam aqueles lugares, mas ele soubera trabalhar bem a combinação entre perspicácia e destreza.

Sentou-se, plugou seu laptop na tomada, e começou a usar. Não tinha muito o que fazer, é verdade. E, em cinco minutos, a primeira chamada de embarque. Resolveu aproveitar o tempo da prioridade dos idosos, gestantes e deficientes para continuar carregando sua bateria na tomada. Pela primeira vez não ia entrar na fila logo de cara, forçando um embarque. Tinha um pouco de agonia de espera.

Depois das prioridades, chamaram os passageiros sentados da fileira 15 em diante. Estava na 13. Respeitaria e iria aguardar um pouco mais pra embarcar, o que podia lhe garantir mais alguns minutos na recarga.

E esperou até ter seu nome anunciado no auto-falante.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Salto

Observava o horizonte através de um binóculo, sentado numa pedra firme em cima do monte mais alto. Sem binóculo via uma amplitude sem igual. Com as lentes, aproximava-se de um pedaço de mar, e sentia quase respingos do mar ao vento.

Passou boas duas horas na mesma posição, atento ao movimento quase estático do alto mar. Nenhuma embarcação, nenhum banhista, algumas aves voando. Nuvens passageiras e o olhar passeando entre as cores da água do mar.

E, pensando, pensando, ele via como se sentia mais solitário olhando um pedaço menor de mar através do binóculos do que se olhasse o mar inteiro no horizonte com seus olhos nus.

Deixou o binóculos de lado, se levantou. Decidiu aproximar os olhos nus do mar que vinha de longe, do alto da montanha mais alta. Saltou.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Trabalho

Queria ganhar dinheiro fazendo o que gostava. Para fazer o que gostava, precisava já ter dinheiro e poder começar do zero em algo novo com algum lastro. Para já ter dinheiro, precisava fazer o que não gostava, mas pagava. E, fazendo o que não gostava, para faturar, não tinha tempo nem condições de fazer o que gostava, conciliando. Estava nessa encruzilhada.

Tinha algum sucesso na empreitada que vinha seguindo. Não era algo que desprezava, mas não era o que realmente queria fazer. Ou que, pelo menos, acreditava querer fazer. Nada garantia que, ao começar, de fato, a fazê-lo como uma profissão, não se desencantasse. Desde criança ouvia que não se pode fazer só o que se quer. E, certa vez, ouvira uma frase que não dera muita bola, mas hoje via como era precisa. Quando hobby vira trabalho, deixa de ser hobby. E trabalho, no fringir dos ovos, é chato.

Como seus dois amigos que sonhavam em ser tenistas. Um decidiu ir atrás do sonho, foi treinar, procurar patrocínio, se jogou na carreira. O outro foi ser advogado. O que se jogou na carreira de tenista não chegou muito longe. Apesar de ser o seu sonho, não teve talento, ou aquela sorte - chamem como quiser - que só os campeões têm. Mas, mesmo assim, consegue, até hoje, viver e sustentar sua família com o tênis. Virou professor, um dos melhores e mais requisitados da cidade. Mas o hobby virou trabalho, e dar aula de tênis é chato. Encarar os alunos, os pais dos alunos, nada do que pensou quando resolveu encarar a carreira.

O advogado também acha seu trabalho chato. Ganha bem mais que o antigo parceiro das quadras. Com isso, ele consegue bater uma bola, por hobby, todo fim de semana. Em junho, sempre tira uma semana de férias para ir até a Inglaterra acompanhar o torneio de Wimbledon. Em janeiro, passeia na Bahia durante o Brasil Open.

Mas, e se o amigo tenista tivesse despontado e tornado-se um profissional vencedor no circuito do tênis mundial? E se o advogado não tivesse obtido sucesso na profissão e hoje fosse um advogado qualquer de porta de cadeia, que certo dia defendeu um criminoso que já o havia assaltado numa outra oportunidade?

O professor de tênis encostava a cabeça e dormia orgulhoso de si, por ter tentado. E frustrado, por não ter conseguido. O advogado dormia com a dúvida. Em travesseiro de pena de ganso.

Pois, depois de pensar tanto nos seus dois amigos e no destino de cada um, resolveu tomar uma atitude. Ligou pros dois e marcou um chopp. Os problemas da vida podiam ficar pra depois, afinal, o time dos três estava beirando a zona de rebaixamento, a nova capa da Playboy era aquela gostosa do Big Brother e ele tinha aprendido umas piadas ótimas de advogado para sacanear.

sábado, 18 de abril de 2009

A estante

Tirou o dia pra ser dona de casa, na acepção machista do termo. Primeiro, lavou a louça toda. Já acumulava alguns dias, estava sem facas. Depois, uma varrida na sala, muito da fajuta. Pretendia passar pano no chão, mas descobriu que ainda não tinha comprado panos de chão.

Partiu, então, para uma atividade mais masculina. Foi montar a estante, que já lhe entulhava a sala há dois meses, aguardando uma montagem divina, pois jamais contratou quem quer que fosse pra montá-la. Resolveu fazê-lo ele mesmo, e sozinho, condição em que se encontrava no momento.

Deitou as madeiras, distribuiu as prateleiras, fez contas, fez análises, estudou o caso e partiu para concluir o intento. Com uma chave de fenda barata que comprara numa lojinha de artigos chineses em punho, apertou parafusos, apertou dobradiças, fez e aconteceu. Suou pra caramba, ouviu música, descansou, bebeu água. E concluiu.

Ficou orgulhoso de si. Fizera algo que vinha adiando há tempos, e sem gastar nada. Uma economia de 30, 40 reais, digamos. Dava pra comprar um ou mais livros, dava pra ir ao cinema 4 ou 5 vezes, dava pra ir no teatro ver Hamlet. Mas tudo isso teria que esperar.

Ficou com uma dor nas costas que o obrigou a deitar o resto do fim de semana.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Paredes pintadas

Ele acordou com a claridade que entrava pela janela sem cortina do apartamento. Pelo menos não era o sol batendo ali de manhã. Era a única vantagem de se ter um apartamento com o sol da tarde. Mas ele sabia que, na hora de ver televisão depois do almoço, iria condenar esta vantagem. E pensou, por um instante, em como seus paradigmas mudavam com freqüência.

Olhou pra ela, deitada ali ao seu lado, sonhando embaixo dos olhos num sono de fábula . Nua, coberta com o lençol que lhe moldava o corpo levemente arrepiado de frio. Na aurora matinal, a visão era romântica, sem o erotismo da noite anterior. Era cândida.

Ele acendeu um cigarro. Tragou uma vez e soprou em direção à janela aberta. Pousou o cigarro no cinzeiro sobre o criado mudo ao lado da cama e curvou-se em direção a ela. Beijou-lhe a nuca, em cima da tatuagem de ideograma japonês. Sentiu que a pele dela arrepiou, beijou de novo. Os ombros se encolhiam. Escutou um sorriso. Ela virou-se pra ele, olhos abertos, sorriso no rosto. Beijo de leve, nos lábios. Ela levantou e levantou ele junto.

Ele elogiou a parede laranja. Ela corrigiu: salmão. Quando ela tinha sugerido, ele achou que iria ser alguma coisa mais para rosa. Assim estava bem boa, ele disse. Ainda faltavam alguns móveis, quase todos, na verdade. Ela colocou um vaso com flores. Ele comprou uma antena pra televisão. Ela chamou ele pra sentar do lado, enquanto passava um seriado bobo na tv.

Ele achava lindo quando ela vestia uma camisa dele. E só isso. Abraçou-a e avisou que tinha comprado, também, sucrilhos e leite no dia anterior, pra ela tomar café da manhã, mesmo acordando às onze e meia. Ela achou bonitinho.

E o cigarro continuava queimando encostado no cinzeiro.

domingo, 12 de abril de 2009

Pacotão Série B

Tinha comprado o pacote do campeonato brasileiro. Por 50 reais ao mês, não perderia nenhum jogo do seu time. Iria abdicar de algumas cervejas, iria a pé ao invés de tomar ônibus, iria mandar menos torpedos pelo celular. Por seis meses.

A expectativa era que esses pequenos sacrifícios fossem suficientes. Se a coisa apertasse, miojo no almoço e no jantar. Mas valia a pena. Voltaria a acompanhar os jogos do seu time. Transformaria sua sala num camarote do estádio.

Mesmo de longe, estava por dentro da escalação, lia as notícias no site, ouvia reportagens na rádio online. Bendita internet! Mas, agora, nos jogos transmitidos na TV, poderia ver pelo quê estava torcendo exatamente. Agora, uma vez por semana, seu dia seria reservado para o seu time.

Na hora do jogo, um ritual particular. Telefone desligado. Bandeira pendurada na janela. Flâmula na mão direita. Camisa do último título vestida no corpo. As outras várias espalhadas no sofá.

E só ele na sala. Não queria torcedores emprestados, muito menos secadores. Se não era para ter seus irmãos-de-manto ao lado, não queria ninguém. Porta trancada.

Conseguia ver o jogo. Analisava o time. Discutia as jogadas. Xingava o juiz. Comemorava gols. Chorava derrotas. Mas não tinha a mesma graça.

Não tinha um desconhecido para abraçar pelo simples prazer de comemorar um gol numa euforia compartilhada pela massa. Não tinha alguém que conversasse do jogo – ou da história do time – e soubesse quem eram aqueles jogadores. A torcida era mais murcha ali naquela sala.

Mas era melhor assim do que sofrer a ausência de ver aquele time, mesmo pela TV, mesmo capenga, mesmo em má fase, entrando em campo. Aquele uniforme, aquelas cores. Era o dia que ele mais aguardava durante a semana inteira.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Literatura para principiantes

Adaptava clássicos para as massas. Fazia uma dona de casa apreender Joyce. Já tinha visto um cobrador de ônibus lendo sua versão de Crime e Castigo. Não eram adaptações declaradas, mas ele roubava as histórias dos clássicos e reembalava numa linguagem simples, acessível. Pobre, mesmo. Recortava as partes que mais lhe convinham da obra e lhes dava um teor mais sensacional - no sentido apelativo do termo.

Os críticos e acadêmicos lhe torciam o nariz, mas seus livros estavam vendendo bem. A edição simplória e de baixo custo facilitava o preço de capa a menos de 10 reais. A academia passava a discutir a função social daquele projeto de literatura. Pessoas que raramente liam alguma coisa estavam devorando livros. Sem saber, estavam até tendo contato com a mais alta estirpe da literatura mundial. Mas a dúvida era sobre a validade desse contato. Pior, sobre a nocividade.

Mas ele seguia seu caminho. O dinheiro entrava constantemente, como nunca antes em sua vida. E, escondido num pseudônimo, escondia também sua verdadeira identidade. Tinha uma fama que não utilizava. Até porque, no fundo, era também um intelectual. Para adaptar ao gosto popularesco obras de tal quilate, era preciso lê-las todas - e compreendê-las, a ponto de poder subvertê-las. Esse crédito a sociedade literata lhe negava. Sentia, sim, vergonha do que fazia, pois era, de todos, o que mais tinha consciência. Mas, mais que um intelectual, era um burguês. Mas não eram todos, afinal? Todos os intelectuais são obrigatoriamente burgueses.

Por outro lado, não assumir-se publicamente era uma ferramenta util para ampliar os negócios. Passou, agora como ele mesmo, nome, sobrenome e rosto, a criticar suas próprias obras, mas que pertenciam ao invisível senhor pseudônimo. Como crítico, era o mais rigoroso e o mais justo. Atacava inapelavelmente, sabia os pontos mais fracos. Conseguiu satisfazer-se como critico e, ao mesmo tempo, deixar seu produto mais rentável tendo mídia espontânea com frequência.

Foi contratado por uma revista de grande circulação nacional. Era o único capaz de criticar as versões fajutas dos clássicos com embasamento. Andou desconfiando que, na real, era o único que tinha lido aqueles livros de verdade.

quarta-feira, 25 de março de 2009

De mudança

Sentia no próprio organismo o peso da dúvida. Dores de cabeça constantes, insônia, ansiedade com taquicardia, nervosismo. Precisava tomar uma decisão e sabia que, o que quer que escolhesse, iria perder muito, sentir-se arrependido em uma série de momentos e aliviado em outros. Achava que já sabia o que queria, mas lhe faltava coragem também. E a covardia, que lhe fora sempre tão indesejada, agora era companheira.

Podia ficar em seu porto seguro, seu lar, o lugar onde conhecia todos os caminhos - e todos os atalhos. Sabia ir e vir, sabia se comportar na maioria das situações, gozava de algum prestígio e, era inegável, ali tivera muitas felicidades. De certo, as melhores de sua vida.

Mas também podia se mudar. Trocar de casa, ainda que não fosse nada muito radical aos olhos alheios, para ele seria uma mudança completa de paradigma. Deixaria o conforto daquele lar onde vivera por anos para abraçar uma realidade diferente, ter novas vistas de suas janelas, e alcançar novos - e promissores - horizontes. Mas, ainda, desconhecidos.

Conhecia outras pessoas que enfrentaram escolhas similares. Algumas foram, e se deram mal. Outras ficaram e também se deram mal. E havia os casos contrários. As estatísticas não iriam lhe ajudar a escolher. Precisava sentir as próprias vontades. Buscar em si o desejo de se jogar no escuro e tatear em busca de luz.

No fundo - mas cada vez mais raso - achava que iria se mudar, sim. O outro lado podia ser amedrontador, mas também era atraente. Onde estava, era tranquilo, gostoso. E ainda bem atraente também. Mas a vontade estava cada vez mais forte. Não tinha, necessariamente, inveja do outro lado. Mas tinha, acima de tudo, desejo de mudar.

Acordou decidido a pôr as malas no carro e pegar a estrada. Iria para o outro lado, atravessar fronteiras, e, até chegar, ia passar por muita coisa. Ansiedade e medo se misturavam aí. E era uma mistura, no fim das contas, excitante. Talvez precisasse disso um pouco mais na vida mesmo.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Retorno

Esteve ausente por um longo período. Passou por muitos lugares, quase todos bem longe dali. Conheceu pessoas, fez amizades, fez amor, fez inimigos, fez vontades e não fez muitas coisas das quais se orgulhasse. Talvez por isso estivesse voltando. E porque não tinha para onde ir.

Não sabia como iam reagir à sua volta. Achava que sua mãe ficaria feliz. Está no código genético das mães. Seu irmão iria lhe virar a cara. Seu pai, pouco lhe importava. Era como ele, e por isso um não tolerava o outro.

Os vizinhos talvez se incomodassem com a presença dele ali. Já não causava muita empatia quando estivera ali antes, quem dirá agora, depois de tudo. Se a notícia se espalhasse, certamente haveria represálias. Gente da redondeza querendo tirá-lo de lá. Iam acusá-lo, até, de desvalorizar o bairro. Aquele bairro imundo onde nascera e vivera tanto, e, ao mesmo tempo, tão pouco. Aos que sobreviviam naquele antro, a indiferença.

Chegou à rua com o sol nascendo. Reconheceu tudo como havia deixado anos antes, e isso lhe entristeceu. Sua casa só tinha as paredes mais descascadas. Alguns brinquedos de criança no quintal talvez evidenciasse novidades. Olhou o portão de ferro bambo. O velho cão olhava fixamente para ele por entre as madeiras da cerca. Não sabia se o cão não o reconhecia, ou o ameaçava. Será que até o cão lhe recriminava?

Olhou as janelas fechadas. Abstraiu-se no silêncio da manhã. As casas germinadas da vizinha; o sobrado e a série de casas sem reboco que iam até o fim da rua sem saída, um muro com dizeres ilegíveis, que ele mesmo havia pixado. Ainda ali. Só ele sabia o que estava escrito. Olhou com mais força e as manchas de sangue no muro tinham secado, mas não sem deixar sua marca gravada no concreto, como quem se recusasse a esmanecer jamais.

Recolheu-se, deu meia volta e desistiu de retornar àquela realidade na qual ele ainda se fazia presente. Em espírito e nas marcas indefectíveis que deixara. Esse fardo ele fizera todos carregarem ali, e que ele carregara com ainda mais pesar em seus anos na prisão. Não poderia sair de uma e entrar em outra. Ali, ninguém esqueceu.

segunda-feira, 9 de março de 2009

O herdeiro

Recebeu uma herança. Podia dar entrada num apartamento, nada muito grande, mas num bairro legal. Podia comprar um carro, melhor que o Escort Hobby 94 que ele insistia em colocar nas ruas, podia ter ar condicionado e travas elétricas. Uma viagem longa, pro exterior, com algum luxo, também era possível.

Não desejava a morte de ninguém, mas não podia negar que ficara, de certo modo, "agradecido" pelo dinheiro. Sentia-se mal com isso, mas pôs na cabeça que a melhor forma de homenagear o falecido e sua generosidade, era gastar bem a quantia herdada. A primeira coisa que fez, ao cair na conta, foi ir a um restaurante tailandês que já vinha namorando há algum tempo. Comeu um peixe desconhecido com um molho escuro de nome impronunciável, feito só de consoantes e um ou outro acento. E amêndoas.

Precisava decidir o destino do dinheiro. As frivolidades e pequenas extravagâncias do dia-a-dia, como o restaurante tailandês ou um terno Ermenegildo Zegna não chegavam a causar grande estrago nos números bancários. Mas, tinha consciência, não podia torrar tudo nisso, mesmo que garantissem quase um ano inteiro de luxo.

Procurou apartamento nos classificados. Chegou a fazer algumas visitas, mas nada empolgou, principalmente a falta de segurança de pagar o restante do financiamento. Viu alguns modelos de carro, importados até. Pesquisou e descobriu a taxa de desvalorização de um automóvel com apenas um ano de uso. Foi o bastante para esfriar a idéia de comprar o cabine dupla japonês.

Pensou em ações na bolsa, mas de inconstante já bastava ele. Não era de arriscar muito. Aplicou no banco, inicialmente, num investimento seguro, só que ligeiramente melhor que a poupança. Os rendimentos da herança permitiam um jantar elegante por semana, pra ele. Ou dois por mês, se acompanhado.

Decidiu tirar 10% da herança pra fazer uma viagem de cinco dias pra Buenos Aires. Ia dar pra se hospedar um hotel chique em Puerto Madero, comer bem, passear e fazer compras. Ficou mal acostumado. Resolveu pegar mais um tanto e dar uma esticada na Europa. Agora os gastos já tinham trocado a dezena da conta bancária. Tomou um susto no último extrato.

Foi procurar ajuda profissional. Contratou uma assessoria de investimento. Gente que tratava negócios como business. Desistiu deles no primeiro mês. Achou que não combinava com ganância. Percebeu que, no fim das contas, não combinava muito com dinheiro. Achou que tinha sina de pobre. Ficou com medo.

Foi ao psicólogo. Frequentou centros de tratamento, foi a palestras de auto-ajuda. Manteve a terapia por seis meses.

Curou-se. Não sabe ainda se foi por causa dos tratamentos, ou se por ter ficado sem dinheiro. Os honorários dos psicólogos estavam pela hora da morte.

sexta-feira, 6 de março de 2009

O homem com dois corações

Tinha dois corações. Num avanço incrível da medicina, o natural e debilitado servia para conter a alta pressão de sangue nos pulmões, fruto da hipertensão pulmonar. O transplantado iria bombear o sangue pelo corpo, coisa que o antigo não conseguia fazer por conta de uma miocardiopatia dilatada.

Viveu assim tranquilamente. Os corações batiam em ritmos diferentes, era divertido escutar o ritmo funkeado que os dois corações faziam em conjunto. Tinha duplicado a chance de infartar na vida, mas também podia pensar que tinha um sobressalente para emergências.

Mas os corações, mesmo unidos por um tubo, e trabalhando para o mesmo corpo e cérebro, eram corações diferentes. Um se apaixonou pela vizinha cuidadosa que lhe fazia canja nas noites de frio. O outro, mais antigo na casa, amava a ex namorada ainda. E, com o problema de saúde, ela passara a visitar mais vezes.

A miocardiopatia dilatada aumentava o tamanho do coração, dando mais espaço pro amor à ex. Mas, por outro lado, a doença enfraquecia o músculo. O coração novo era menor, mas tinha mais força pra impulsionar o amor pela vizinha caridosa.

O cérebro se via confuso porque liberava as substâncias ligadas ao amor e à paixão duas vezes ao dia, descontroladamente. Os olhos vidravam para duas pessoas diferentes, o corpo suava mais que o normal. Essa confusão corporal era caótica para os órgãos, mas ele até que gostava. Tinha as boas sensações do amor duas vezes. O frio gostoso na barriga, o sorriso bobo perdido no rosto. Tudo dobrado.

E ainda tinha uma excelente e convincente desculpa para ter duas mulheres ao mesmo tempo em sua vida.

domingo, 1 de março de 2009

O Craque - Parte II

Não imaginava que a recuperação seria tão dolorosa. Os meses nunca foram tão longos. As horas de fisioterapia lhe roubavam a alegria do resto do dia. Sua mãe e sua irmã vieram do interior para lhe fazer companhia. Algumas vezes perdeu a compostura, desobedeceu às ordens médicas, aos conselhos da mãe e à vigilância da torcida. Foi visto em boates, bebendo e fumando. Ser visto significava ser fotografado. Ser fotografado significava ser julgado e criticado. Às vezes, extorquido. Foi visto saindo de bordéis. Pagou caro pela não publicação das fotos a um reporter escroque de uma revista escrota.

Voltou a jogar aos poucos, já sem tanto alarde da imprensa. Entrou no segundo tempo nas primeiras partidas, sem conseguir desempenhar seu melhor futebol. Faltava-lhe ritmo de jogo e sobrava-lhe receio em partir pra cima dos adversários, entrar em disputas mais ríspidas de bola e tentar dribles mais ousados e desconcertantes.

Passou a ser questionado pela torcida e pela imprensa. Ficou arredio, dava respostas atravessadas nas entrevistas e pouco se relacionava com seus colegas de clube, "traíras", em sua opinião. Em uma entrevista, questionou publicamente o treinador por não escalá-lo. "Perdi minha vaga no time por um carrinho criminoso, fazia dois gols todo jogo. Agora tenho que ficar no banco de um cara que faz o goleiro adversário parecer maior que o gol. Mas a culpa não é dele, que Deus que fez assim, é do treinador que bota pra jogar."

Foi desligado do time principal e passou a treinar com o time B. Rebelou-se, disse que assim não vestia aquela camisa. Ameaçaram-no de processo, demissão com justa causa, e ele teria que pagar o valor da recisão. Orientado por seu empresário, fingiu contusão. A relação com o clube ficou insustentável. Dava seguidas declarações criticando o time, o clube, a estrutura, o treinador. Mas o clube não pretedia livrar-se do jogador gratuitamente, ainda tinha esperança que ele voltasse a ser um produto tipo exportação bem rentável.

Resolveram emprestá-lo para uma equipe de menor porte do interior do estado. No início, ficou irritado e desmotivado. Mas, na primeira entrevista como jogador do time caipira, perguntado se seu futuro seria nos times menores, disse apenas: "se não for o artilheiro do campeonato, me mato". Encerraram a coletiva. A frase drástica foi assunto em todos os jornais. Não deu mais entrevistas depois disso. Rendeu a polêmica que almejava, ele voltara a ser notícia. E iria usar o descrédito como motivação.

Seu time foi um mero coadjuvante no campeonato, mas ele, sem dar nenhuma entrevista mais, nem comparecer à nenhuma mesa redonda, foi o artilheiro do certame. Foi recolocado no time de ponta, com quem tinha contrato. Mas aquela camisa ele não vestiria nunca mais.

Continua.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Carnaval, carnaval, todo ano tem o carnaval

Odiava carnaval. Todo mundo estava atrás dos blocos, dos trios elétricos e dos guarda-chuvas coloridos. Ele ficou em casa. Não atendia celular nem telefone, os amigos acumulavam os convites. Viu filmes, viu novela, mas não aguentava ver jornal, muito menos transmissão de carnaval. Em algum momento, ainda na segunda de manhã, já estava saturado da televisão, da internet, e da videolocadora.



O carnaval vencera. Aceitou uns convites esperançosos de amigos insistentes e foi dar uma olhada nos blocos de rua da cidade. Não se fantasiou, mas uma das amigas lhe cedeu um chapéu de cangaceiro e um colar de flores havaianas. Não pulou muito, mas ficou feliz com as companhias. A cerveja estava gelada, gostou do serviço dos ambulantes, apesar de terem atravancado o percurso. Não entrou no meio da multidão, gostava do espaço no próprio entorno. Os amigos também, faziam rodinha, ensinavam-lhe passos, os amigos eram legais, ele tomou algumas latinhas, e começou a se soltar. As marchinhas não eram parte do seu dia-a-dia, mas ele conhecia a maioria. Era fácil porque elas eram só refrões.



Abraçava os amigos, dava o braço a torcer. Estava se divertindo. Talvez não fosse o folião típico, nem o mais animado, nem o rei do pique e do samba do pé. Mas estava passando um dia agradável, em companhias com quem simpatizava e, é bem verdade, com algumas cervejas na cachola. Estava se divertindo. O carnaval vencera.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Conto erótico sem nenhum palavrão

Tinha transado cinco vezes naquele dia. Não era seu recorde pessoal, mas era o recorde com ela. Não sabia do dela, mas admitia que não deveria ser também. Sua conta se baseava na quantidade de vezes que ele havia completado. Se o placar fosse baseado nela, a goleada seria menor, mas não desprezível. Mas ela também contava a partir dos resultados dele. Reflexos de um machismo intrínseco.

A primeira foi logo depois do almoço. Ainda estavam de barriga cheia, os dois. Foi uma transa preguiçosa, de lado, movimentos sem muita gana. Os dois morgados e sonolentos na sesta. No fim, ele sim, ela não. Mas tinha sido bom. Serviu para aproximar os dois para o cochilo da tarde. Dormiram abraçados, o que não era muito comum.

A segunda vez começou com uma surpresa. Ele ainda dormia, acordou com um belo presente dela. Ainda estava lerdo por conta do sono quando ela subiu por cima dele e fez praticamente todo o trabalho. Ela parecia ter vindo direto de um sonho erótico. Ele estava claramente em uma outra sintonia. A distração do sono, ao mesmo tempo que lhe roubava um pouco da libido, lhe rendia alguns minutos a mais que o habitual, o que, por sua vez, permitiu a ela concluir seus intentos. Foi bonito, os dois quase ao mesmo tempo. Ele acordou perto dos finalmentes, de vez.

Não demorou muito, veio a terceira. Agora os dois totalmente acesos, sem desculpas, todos os órgãos do corpo pareciam voltados para aquilo. A performance foi memorável até. Algumas trocas de posições, desejo em alta, corpos que suavam e se preenchiam. Sucesso. Ela empatava o placar com uma rodada dupla. Não contou pra ele, mas ele percebeu que ela tinha adorado. Ganhou beijinho ao pé do ouvido. Pra ele também tinha sido ótimo.

Ela achou por bem retribuir o sucesso obtido anteriormente, e, meia hora e um episódio de Californication depois, presenteou-lhe com uma de suas modalidades favoritas. Passou uns 5 minutos proporcionando-lhe prazer, até que não resistiu e virou-se, num convite irrecusável que ele prontamente aceitou. A quarta vez foi apoteótica e bastante demorada. Até mais longa do que deveria, no final estavam exaustos, quase desistindo. Ele, principalmente, já que escolheram posições que exigiam de seu parco preparo físico. Prometeu-se, mentalmente, voltar para o tênis na segunda-feira. Mas chegaram até o fim, que era, na verdade, o fim dele. Ela se deu por satisfeita dele ter terminado. Já estava distraída, pensando nos afazeres da semana.

Dormiram, bem cansados e suados. Ele pôs o ventilador no máximo, ela desfez-se do lençol. Ele acordou com ela procurando suas coisas. Propôs um banho, ia fazer bem. Entraram juntos no chuveiro. Ele abriu mão da água fria que preferia, só para agradá-la. Ela começou a ensaboá-lo, e ele a ela. Se abraçaram, se beijaram, e transaram em pé, enquanto a água corria. Usou as mãos em parceria. As suas e as dela, nela. Ela chegou antes dele. Até agora ela não sabe se ele acabou chegando, ou mentiu para encerrar. Por um momento, pensou se de repente ele teria enjoado. 5 vezes, e nem eram namorados. Ainda, pelo menos.

Afastou esses pensamentos quando ele lhe deu um beijo ardente e demorado, como se o chuveiro fosse a chuva dos filmes românticos, em que o casal se beija apaixonadamente, a música sobe, fade out, e vivem felizes para sempre. O cenário não era de chuva, nem havia trilha sonora, mas com o chuveiro como testemunha, aquele casal que pensava estar apenas se divertindo num pernoite de motel, na verdade, estava começando a descobrir o amor.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O cineasta

Não tinha visto o vídeo de Paris Hilton, nem o de Cicarelli. Vira, na pré-adolescência, o de Pamela Anderson, numa concorrida fita vhs que um amigo tinha trazido do intercâmbio nos Estados Unidos, junto aos bonés do Mickey e bonecos articulados. Não sabia quem era Júlia Paes nem Márcia Imperator. Gretchen, para ele, era uma cantora (sic). Rita Cadillac, uma chacrete das antigas.

Pois, agora, conhecia Júlia Paes, Márcia Imperator, e uma penca de outras moças e rapazes. Descobrira outras atribuições de Gretchen e Rita Cadillac. Depois de anos de faculdade, investimentos pessoais, cursos, trabalhos em mostras de realizadores renomados, estágios em longas de prestígio, dois curtas de boa repercussão no currículo, via-se ganhando bem, muito bem, fazendo cinema pornô.

Tinha começado meio sem querer. Vencera um pitching para um programa num canal por assinatura. No meio da produção do piloto, o comando do canal achou o programa muito forte para o perfil do público, e repassou-o para outro canal do mesmo grupo, de conteúdo adulto. Fez o programa e agradou, acabou fazendo mais dois. Daí, recebeu o convite para sair do mundo erótico chic e entrar no pornô.

Começou claudicante, queria trama, história, travellings, atuações. De cara já foi esculachado pelos produtores. Passou para o bê-a-bá e ganhou mais credibilidade. Seu diferencial era a exploração da sensualidade, antes da consumação do ato. O que muitos viam como enrolação, ele via como atração. As preliminares do pornô, que não eram necessariamente as preliminares do sexo. Investia numa sugestão sexual, num certo mistério, pra depois a coisa rolar por completo.

Apesar de umas torcidas de nariz, levou adiante seu intento e conseguiu amealhar muito sucesso. Que era igual a dinheiro, na verdade. Uma vez foi na pré-estréia do filme de um colega da faculdade. Encontrou muita gente. Nem todos sabiam da sua ocupação atual. Apesar de rico, tinha alguma frustração por não fazer o que queria. Também não desejava fazer o que queria e viver num kitchnet apertado e andar de ônibus.

Na verdade, não sabia. Via seu colega ali, em cima do palco, anunciando todo orgulhoso seu longa-metragem. Podia nem ser bom. Mas via que o orgulho que o colega sentia ali em cima era genuíno. Isso ele não tinha.

Pegou um vôo naquela mesma noite e foi recuperar-se da melancolia com um passeio de uma semana em Fortaleza num resort em Jericoacoara. O dinheiro comprava algum orgulho, no fim das contas. Foi pensar nos prós e contras de sua vida num passeio de barco. Precisava se convencer de que, no fim das contas, estava feliz.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A dona do bar

Ela era dona de um bar na Lapa, reduto da boemia, e que só fechava quando o último cliente saia, dormia ou morria. Era o bar preferido para encerrar a noite, principalmente por, depois de certa hora, ser a última opção. Ali se juntavam, bêbados, playboys inconsequentes, prostitutas e cafetões, criminosos de diversas estirpes, além de policiais em ronda - do jeito que eles entendem por ronda. Só não aparecia ali gente de bem.

Já fora prostituta e já vendera droga. Se requisitassem, ainda conseguia arranjar um pouco de pó e maconha. Crack, era terminantemente contra.

Nunca matara ninguém, mas já ferira uns clientes agressivos com canivetes e barras de ferro. Já mataram dentro do seu estabelecimento. Bandidos com bandidos, policiais com bandidos, bandidos com policiais. Mas, ali, ninguém era diferente. Brigavam ali e acertavam as contas ali, com ou sem sangue. E, fora dali, ninguém procurava saber.

Se ela era feliz? Não, não era. Mas achava que felicidade não era pra gente como ela. E se resignava em sobreviver. Nunca tinha se apaixonado, e não fazia mais questão. Os anos de ponto na praça lhe haviam empalidecido o coração. E a quantidade de sangue que já vira jorrar, conhecidos e desconhecidos, em sua frente ou em seus sonhos, lhe roubou a alma.

Se havia um momento em que era feliz, eram as noites quando sonhava sua vida diferente. Não eram frequentes, essas noites desses sonhos. Mas ela sempre esperava ansiosa pela hora de dormir.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A banda dos amigos

Tinha uma banda. Tocava baixo. Seu melhor amigo era o vocalista. Na guitarra, um outro grande amigo, dos tempos de colégio. O baterista era um conhecido, mas tocava bem e era na dele. E tinha uma bateria. E um carro.

Não eram um grande sucesso, nem mesmo na cidade, mas conseguiam fazer uns shows aqui e ali. Geralmente sem cachê, quando muito, algumas bebidas da casa. Tinham alguns fãs que acompanhavam a banda nos shows com frequência, além dos amigos - a turma era grande - e das namoradas. Deles e dos amigos.

Todos tinham outras profissões. Música era um hobby. Uma paixão, na verdade. Mas não era o meio de vida de ninguém. É bem verdade, nenhum deles tinha um meio de vida muito forte ainda. Eram músicos independentes, mas que ainda moravam com os pais.

Faziam composições próprias, e tinham prazer em compor juntos. Principalmente ele e o melhor amigo, o vocalista. Ele não gostava muito de fazer covers, mas seu amigo achava essencial. Pra ganhar público, dizia. Ele achava besteira. Queria ganhar o público com suas próprias músicas.

Esse foi o primeiro embate dentro da banda. As namoradas ainda viriam a brigar entre si para pôr a pá de cal que faltasse. As Yoko Ono da banda dos amigos. Mas isso ainda seriam cenas de um próximo capítulo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Hora da verdade

Ia contar assim que ela acordasse.

Não conseguia mais manter a mentira. Nem achava que ela estava desconfiada, mas, dentro dele, sentia-se muito mal por estar enganando ela. Sentia-se ainda pior porque sabia que, assim que contasse, ela ia se sentir a maior idiota do mundo por não ter enxergado aquilo ali na cara dela.

Ela demorava a acordar, e a ansiedade, misturada com aflição, tomava conta dele. Será que ela entenderia que toda essa falsidade tinha, no fundo, a intenção de poupá-los de uma crise pior? Que, agora mais que tudo, ele sabia que a amava? Que esperava ser perdoado?

Afinal, tinha algum crédito. Eram muitos anos de relação. Não podia pôr tudo a perder por causa de uma noite em que bebera além da conta. Seus amigos estavam de prova, vinha tropeçando desde a saída do bar. Foi muito sem querer que trombara no aparador e derrubara a vela chinesa, último presente da avó antes de falecer.

Mas ia contar, assim que ela acordasse.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Casanova da zona sul

Comprou o jornal do dia e foi direto na programação do cinema. Era uma época de poucas novidades interessantes nas salas da cidade. Época pós premiações, só filmes obscuros estreando. Pulou para a coluna dos teatros. Uns títulos curiosos, mas nem por isso atraentes. Mania de dar títulos enormes às peças. O preço também não era nada convidativo. Ligou para um teatro onde a peça de uma atriz veterana e muito premiada estava em cartaz. Esgotada.

Um jantar seguramente estava no cardápio da noite, mas precisava de algo mais. Jantar, seguido de subir no apartamento para ver um DVD ou escutar uns discos seria muito atrevimento. Primeiro encontro, precisava de outra abordagem. Com cineminha ou teatro de fora, estava sem imaginação para pensar no que poderia combinar com o jantar. Antes ou depois dele.

Motel passou-lhe pela cabeça. Riu, debochando de si mesmo.

Uma exposição, um museu... tinha medo de parecer pretensamente intelectual e pôr tudo a perder. Boate... achava que já tinham passado da idade. Quem sabe um show? Foi olhar o que estava passando nas casas de show mais tradicionais, que têm mesa e garçons servem bebida e comida. Um espetáculo de comédia em uma, um show sertanejo em outra. Desistiu.

Já estava se sentindo fora de forma na arte do flerte, mas agora sentia-se muito pior na arte do encontro. Aos 64 anos, recém divorciado, parecia que tinha desaprendido tudo o que lhe fizera ser o Casanova da zona sul aos 20 e poucos.

Foi quando seus olhos brilharam, e percebeu o que precisava para fazer daquela noite, uma noite especial e inesquecível. Retomou o velho Casanova que era, tornando-se novamente o Casanova que fora.

Um jantar, seguido de um baile dançante no La Plata. Sabia que lá conheceria as músicas, saberia os passos de dança. Rejuvenesceria, não adequando-se ao hoje, mas voltando à sua própria juventude. E poderia mostrar que, 40 anos depois, ainda batia ali um coração ritmado ao som de Gardel. Como na juventude. Como nos tempos do Casanova da zona sul.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O padre e a moça (ex BBB)

Uma ex BBB, capa da playboy, algumas pontas em seriados e programas de TV. Tudo isso nos 3 meses após o término do reality show. Depois, nos 3 meses seguintes, aparições rarefeitas em programas de qualidade cada vez mais questionável. Até o ostracismo e a volta a um mundo que, se não real, era bem menos brilhoso.

A ex BBB conheceu um ex padre. Católico praticante desde criança, estudos teológicos no seminário. O melhor aluno. Ordenação ainda bem jovem. Devoção total nos primeiros anos. Acomodação numa paróquia do interior. Vida recatada e tediosa. Até que um furacão de pele morena e olhos expressivos de 18 anos passou em sua vida. Ela talvez jamais o houvera visto. Ele se apaixonou platonicamente e largou a batina sem jamais ter provado dos prazeres da carne da moça. E de moça nenhuma até hoje. Mas o desejo carnal latente fora pecado o bastante para questionar sua própria vocação e optar por abandonar.

Pois a ex BBB conheceu o ex padre numa padaria. Ele comprava pão sírio. Passou a comer - e adorou - depois que deixou a igreja. Continuava católico, mas agora permitia-se algumas novidades além das linhas inimigas. Ela, pão de forma light. Os produtos estavam bem próximos na gôndola do canto. Os dois se encontraram. Ele jamais vira a moça na TV, mas olhou pra ela candidamente. Ela, acostumada com as pessoas que a viam, mas não reconheciam de primeira, sorriu empolgada. Cumprimentou o padre com um bom dia de apresentadora de telejornal. Entusiasmado, mas quase mecânico. O padre ficou impressionado com a gentileza e, por força do hábito, respondeu com um que deus lhe abençoe.

A cara de interrogação da ex BBB foi clara. E o ex padre ficou sem graça. Emendou, tentando fugir do embaraço, que o pão sírio também tinha baixa caloria e era muito mais saboroso. A ex BBB resolveu dar crédito àquele sujeito estranho.

E perguntou se ele era seminarista. Fui padre, ele respondeu, mas deixei a igreja.
Fui do Big Brother, na segunda edição. Já faz uns 7 anos.
Não sou muito de TV, me perdoe não tê-la reconhecido.

Ela disse que não tinha problema. E que devia desculpas também por ter cuspido uma hóstia certa vez. Ele sorriu, achando engraçado. Ela sorriu, despediu-se e saiu. Ele foi comprar alguns outros itens. Gostaram das sinceridades um do outro.

Mas tinham segredos. A ex BBB já tinha sido noviça. E o ex padre já a conhecia da capa da Playboy, a marcante morena de olhos claros.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Pizza pra janta

Pediu uma pizza. Marguerita e peperoni. Estava com fome, sentia que poderia comer a pizza sozinho. Tamanho família. Como brinde da casa, ainda viria uma pizza pequena doce, sabor chocolate com castanha.

Era um pouco tradicional em termos de pizza. Odiava as combinações pós-modernas. Pizza de strogonoff, pizza de picanha, pizza de feijão. Fora as combinações pavorosas com catupiry, o que lhe dava asco. Mas, tinha que dar o braço a torcer, a pizza de chocolate lhe havia agradado. Sua porção italiana torcia o nariz, mas era inegável o prazer que sentia ao comer. E, como era brinde, não iria recusar.

De brinde vinha também um refrigerante 2 litros à sua escolha. E a escolha era óbvia. Coca-cola. Assim como nas pizzas, também era bem conservador quanto aos refrigerantes. Coca-cola, guaraná, sprite. Só tomava desses. Mas aceitava que tomassem Fanta, até mesmo uva, porque eram tradicionais. As invenções (fanta tangerina, coca-cereja, com limão, H2Oh, etc), estava fora.

Cheio de verdades e senhor de si, colocou a mesa pra um. O jogo americano, o prato, o garfo e a faca. Um copo, o balde de gelo (como estava calor!) e o porta-guardanapos. Colocou também a garrafa de azeite de oliva, que caia muito bem nas pizzas. Catchup e maionese eram heresias. Nisso, seu lado italiano era imperdoável.

A pizza chegou. Abriu a embalagem em cima da mesa. Cheirosa como se fosse a última pizza do mundo. Parte verdade, parte fruto da fome intensa que sentia. Cortou a pizza em 8 fatias, simplesmente para ter um controle tradicional, porque, no fim das contas, só havia ele pra comer.

Sentou e comeu.

E por um instante, vacilou, desejoso de não estar jantando sozinho.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Craque - Prólogo.

Tinha sido uma promessa do futebol. Aos 19 anos, estava jogando o fino. Tinha velocidade, técnica refinada e precisão no chute. Era magrinho, alvo de pancadas, mas tinha bons reflexos e esquiva apurada. Ainda assim, tinha pavio curtíssimo e, a cada pancada recebida, a fúria e o sentimento de vingança eram enormes. Envolveu-se em brigas memoráveis dentro de campo. E colecionava tantos cartões vermelhos quanto gols de placa e elogios da imprensa.

Foi alçado a titular de um grande clube sem ter completado 20 anos. Era presença certa nas seleções de base, e os mais entusiastas de seu futebol já pediam o jovem craque na seleção principal.

Comprou um BMW antes até de tirar a habilitação. Comprou a habilitação também. Comprou o amor de algumas mulheres (ao mesmo tempo) e a amizade de um sem-número de pessoas, dentro e fora do mundo do futebol. Vestia as grifes mais caras e ia nas melhores boates. Passou a ser figurinha fácil nas noites da cidade.

Seu futebol continuava prestigiado. Uma sondagem da Itália lhe garantiu um aumento substancial, e ficaria no Brasil até o ano seguinte. As noitadas se intensificaram. O clube abafou diversos escândalos, mas as faltas nos treinos matinais e as constantes fugas da concentração passaram a comprometer o grupo. Os jogadores mais experientes - e bem menos badalados - acusavam o treinador de permissividade. O craque desdenhava dos velhos ídolos do passado e se projetava como herdeiro da 10 canarinho.

A imprensa esportiva celebrava o craque folclórico. A imprensa marrom, o craque dos escândalos. A soberba já começava a incomodar companheiros e adversários. Os carrinhos passaram a ser cada vez mais duros - e mais altos. Chegou a sair chorando de campo em três oportunidades, só naquele campeonato. Pela primeira vez, ficara de fora por 1 mês devido a uma lesão por pancada.

Certa feita, numa goleada em que tinha marcado duas vezes, passou o pé por cima da bola, gingou pra lá e pra cá, e tomou um carrinho maldoso por trás. O adversário foi expulso. Dizem as más línguas que um companheiro pensou alto um "bem feito".

Ficou 1 ano sem jogar, recuperando-se da fratura em três lugares na perna direita, que lhe custou um contrato milionário com o clube italiano, uma convocação para a Copa América, e uma dor que o fez chorar. A dor de ver sua carreira - sua vida - ruirem em um instante.

Continua...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Guia de Viagem

Não conseguia encontrar o bendito guia de viagens que comprara há uns três anos, quando achava que iria fazer um curso de três meses em Nova York. Na ocasião, desistira da viagem poucos meses antes por conta do falecimento da mãe. Mas, agora, outra oportunidade tinha surgido, ainda mais interessante, e já estava com tudo acertado para viajar.

Lembrou daquele guia por acaso. Não era melhor que outros guias que poderia comprar em qualquer livraria. Mas sabia que, ali dentro, havia algumas preciosidades que não encontraria entre as milhões de páginas de todos os guias de Nova York do mundo juntos, em qualquer língua, em qualquer edição.

Procurava obstinadamente. Abriu todas as portas do armário, remexeu todas as gavetas, tirou os livros da prateleira e observou todos os espaços possíveis dentro daquele apartamento que, por sorte, não era muito espaçoso. Chegou à sala, que ainda tinha umas teimosas caixas que nunca foram abertas desde a última mudança, há não mais que dois meses. Começou a abrir a primeira caixa, a da impressora.

Copos de vidro devidamente embrulhados em jornal. Nunca sentira falta daquela coleção. Tinha outros copos no armário. E, de qualquer forma, usava sempre o mesmo copo de plástico amarelo para tomar refrigerante. Água, direto no gargalo. Cerveja, na lata ou na long neck. Toddynho, no canudo. Suco... suco?

Passou a fita adesiva na caixa da impressora com os copos embrulhados em jornal. Pegou a outra caixa que ficava imprensada entre a estante da TV e a parede da sala. Um caixa menor, originalmente de um abajour que ganhara no open-house que promovera, e que fora um fiasco. Não fazia idéia do paradeiro do abajour. Dentro de sua caixa, alguns pocket-books. Teve sua época compulsiva de comprá-los nas bancas de jornal.

Foi retirando um a um, espanando a poeira e observando quanto dinheiro havia gasto com uma literatura da qual lera pouquíssimos. Crime e Castigo (não conseguira ir além da página 49), O Príncipe (ainda plastificado), Cuca Fundida (esse leu inteiro, adorava o estilo Woody Allen de escrever), O Grande Gatsby (não conseguia se lembrar se leu), On the road, Dom Casmurro, Veríssimo, Neruda, Shakespeare, Angeli.

Até que, embaixo de tudo, embaixo de um castigado livro de receitas, com uma página de pavê de chocolate solta e amassada, estava o guia de Nova York que vinha procurando. Não se lembrava porquê tinha alocado naquela caixa de livros que não lera, nem leria. Ou, talvez, que não quisesse ler.

Abriu o guia, folheou. E, no meio de suas páginas, entre as dicas de restaurantes em Upper East Side, o bilhete dela. Desejos de boa viagem, de amor incondicional, votos de sucesso e de confiança plena. Aquele bilhete, escrito há três anos, não estava datado. Ele tinha certeza que o bilhete estava renovado. Não indicava o local, porque era pra qualquer lugar. Não tinha data porque seria pra sempre. Como dizia o epílogo do bilhete.

"Te amo pra sempre. Mama"

sábado, 31 de janeiro de 2009

Cofrinho de Moedas

Dia após dia, ia colocando as moedas dentro da lata. Qualquer uma, qualquer valor, indiscriminadamente. Troco de ônibus, de supermercado, do cigarro, achadas na calçada, embaixo da almofada, no sofá. Qualquer moeda terminava repousando naquela lata verde-grená que certa feita fora de algum suplemento alimentar.

A lata já estava pesada. Às vezes se perguntava quanto já teria ali dentro. Já havia o quê, uns 2 anos e meio que juntava-as sem pestanejar? Mais ou menos isso. Muita gente já tentara demovê-lo da idéia, já tem tempo demais, ta na hora de gastar, qual é?!

Mas ele era mais forte que isso. E continuava em sua epopéia individual e sem destino. Não sabia onde ia parar. Sequer sabia aonde queria chegar. Simplesmente, ia. Análogo a como levava a vida, de modo geral.

Certo dia, fora pego desprevenido após um aumento na tarifa do ônibus. Passou a custar R$ 2,20. Puta que pariu, trazia exatamente uma nota de dois reais no bolso, o preço antigo. O cobrador não parecia muito disposto a fazer qualquer negociata. Em meio ao vexame do calote, a salvação veio na forma de um antigo colega do colégio que, entrando no ônibus no ponto seguinte, puxou do bolso da calça um punhado de moedas e, gentilmente, emprestou-lhe uma de dez e duas de cinco.

Um tanto encabulado, seguiu seu caminho no ônibus ao lado do camarada que poupara-lhe quatro quilômetros de caminhada sob o sol inclemente daquela terça-feira de verão.

Ao sair do ônibus, uma rápida passada no caixa eletrônico, a fim de evitar futuros vexames. Vinte reais. Tampouco podia dar-se ao luxo de esbanjar.

Sete reais no almoço do restaurante a quilo no térreo do prédio onde trabalha. Dois reais no chocolate fila do caixa para pagar pelo almoço. Saldo, 11 reais.

R$ 2,20 no ônibus de volta pra casa. Guarda os oitenta centavos para a lata. Saldo, 8 reais. Vai até a banca de revistas em frente ao ponto. DVD de Cães de Aluguel a R$ 5,90 num balaio em maio a pretensos sucessos sertanejos, filmes de Steven Seagal e coletâneas de Bee Gees. 10 centavos para a lata e saldo de 2 reais.

Resolve fumar um cigarro antes de entrar no prédio, talvez a zona mais anti-tabagista do mundo, graças ao síndico asmático. Puxa a carteira e descobre restar-lhe um mísero último cigarro.

Volta à banca de jornal para comprar um novo maço. Usaria as moedas mas não contaria ao confrinho. Contudo, descobre que o cigarro pelo qual pagava, até ontem, R$ 2,50, hoje passou a custar R$ 3,25. É a nova taxação, explicou o jornaleiro. E a inflação parecia ter dia marcado para subir todos os preços da cidade. Pelo menos todos os quais ele precisava gastar.

Faltavam-lhe 35 centavos. Três de 10, uma de 5; uma de 10, cinco de 5; sete de 5; uma de 10, uma de 25. Inúmeras combinações que ele não tinha. Depois de anos e anos de maturidade, via-se obrigado a voltar a comprar cigarro a varejo. Sentia-se um moleque. Derby ou Goudan, eram suas opções. Sentiu-se mais humilhado ainda, mais que no episódio do ônibus. Maldita agonia, maldita crise mundial, ou que razão existisse para dar conta desse inferno inflacionário que irrompia diante dos seus olhos. O mundo subindo de preço e faltava-lhe dinheiro para viver.

Voltou pra casa e a primeira coisa que fez foi arrebentar aquela maldita lata.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Última missão

Falhara.

Pela primeira vez, perdia um prazo. Atrasava. Não conseguia saber, exatamente, o que o impedira de cumprir com a tarefa acordada. Tinha alguma idéia, contudo.

Colocou a arma de lado e começou a avaliar se valia à pena continuar com tudo aquilo. Se esse atraso não seria um sinal de que deveria parar. Afinal, os paradigmas mudavam agora. Perdeu a qualidade que mais lhe orgulhava, de cumprir com a meta estabelecida. Se orgulhava de nunca ter falhado nesse ponto.

Mas, hoje, falhara. Já passava da meia noite e ele não havia executado a tarefa. Pior, começava a questionar, não só seus métodos e estratégias, como a validade daquilo tudo. Não sabia quem era o alvo de sua empreitada. Nunca soube, nunca quis saber. Gostavam disso nele. E ele gostava de ignorar. A ignorância era uma benção nesses casos.

Mas, agora, era diferente.
Ele era diferente.
Algo nele estava diferente.

Agora via mais claramente o que o tinha desnorteado na noite anterior, e feito com que atrasasse a consumação do fato. Um telefonema. Duas palavras. Um resultado.

Seria pai pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Velhice

Estava totalmente sem preparo físico. Nem de longe parecia o atleta que já fizera travessia a nado e que, seguidamente, completava a maratona. Um incômodo no joelho esquerdo lhe fazia boicotar a corrida. Uma queda, há alguns anos, numa calçada de pedras portuguesas meio soltas, lhe havia fraturado a bacia. Não tinha certeza, mas achava que ainda fazia um barulhinho irritante quando levantava a perna a partir de certa altura.

Estava mesmo velho.

Tinha um pouco de preguiça - e bastante medo - de ir ao médico. Os médicos sempre pareciam ver o pior nas situações, acreditava. Já iam mandá-lo fazer cirurgia, usar muletas. Se pegasse um açougueiro, capaz de querer metê-lo numa cadeira de rodas de vez. A preguiça era de lidar com isso tudo, convencê-los do contrário, argumentar com a família assustada e, por fim, desobedecer a todos. A rabugice justificada pela velhice lhe servia de salvo conduto para agir como quisesse.

O medo era de que eles estivessem certos. Todos. Em tudo.

Então ficava nesse dilema. E, enquanto isso, doíam o joelho e a cintura, que imaginava ser sequela do tal problema da bacia. Dor de velho. Era melhor ficar velho que ficar doente.

Desistiu dos exercícios. Comprou uma poltrona reclinável. Colocou na sala. Sentou-se, era a maciez que se imaginavam as nuvens. Reclinou-se, como se o próprio Deus lhe repousasse as costas nas mãos. Com o controle remoto, ligou a TV. A cabo. Futebol, seu time. E ganhando.

Nesse momento de paraíso pleno em si mesmo, pediu à esposa, com quem estava casado há 43 anos, uma cerveja. E podia morrer assim, sem nenhum diagnóstico desenganador, só com umas dores típicas da idade. Esse diagnóstico era dele mesmo, e bastava.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Mea culpa

Como ela podia ser tão egoísta? Só cobranças, cobranças, cobranças. Vai pra onde, com quem, que horas, até que horas, como, quando, por quê. Cada frase terminava com uma interrogação. E ele tinha certeza que vinham vários pontos de exclamação depois. Assim???!!! Assim mesmo.

Já nem se lembrava mais de como ou porquê a discussão começara. E, de repente, isso era o menos importante, uma vez que o percurso da discussão levou os dois a caminhos pouco saudáveis para o relacionamento. Gritos, resmungos, irritação. Estupidez.

Estava sem paciência. Não estavam os dois? Não podia continuar assim. Brigas quase diárias, agressividade, lamúrias. Qualquer coisa irritava. Os defeitos estavam cada vez mais intragáveis, as qualidades tornaram-se obrigação e rotina.

Que horrível. Não era a combinação mais feliz. E começou a recordar do porquê tinham chegado tão longe no relacionamento, o maior da vida de ambos. O sorriso, o prazer, a companhia. O sorriso pelo prazer da companhia. Cumplicidade. No olhar, no toque, nos gostos. O gosto, o cheiro, o tato.

A palavra certa na hora certa. A surpresa boa. Jantar fora, cineminha, ficar em casa, filme, seriado, programa de TV. As fotos na parede, as viagens. A paranóia de regime, rodízio japonês, tô gorda, tá linda!, um beijo, um abraço, um afago.

Comprou a dúzia de rosas mais bonitas e só tinha olhos pra dali pra frente. Era mais ela, mais com ela, mais, mais, mais.

E esperava que ela tivesse raciocínio semelhante, vez ou outra. Sabia que flores não durariam pra sempre.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O morto

Mataram um cara na frente do prédio. Um cidadão banido do morro que estava tentando voltar. Não deixaram subir nem 20 metros. Quatro tiros certeiros. Só ouviu os balaços da sala. Aquele medo cercado de dúvidas. Foi tiro? Bombinha de São João? Fogos? Bola batendo no portão de ferro? Uns minutos de expectativa por mais barulhos. Nada. Então não foi tiroteio.

E não foi mesmo. Execução pura e simples. Olhando pela janela, o corpo. Caído no chão, ensanguentado. Não se vê muitos detalhes do sexto andar, mas o suficiente para se constatar que há um homem assassinado na calçada oposta. Pouco tempo depois, parentes desesperados chegam, aos berros de um choro descontrolado. Sem pudor nem asco de tocar no corpo sem vida, manchando-se de sangue e lágrimas.

Do alto, distante e distanciado pelo vidro da janela, a visão não é repulsiva. A janela emoldura a cena e emula uma imagem de televisão. A respulsa é substituída por um certo fascínio mórbido. O impacto da visão já se perdeu em meio às doses de realidade avizinhada exibidas na TV. Nunca tinha visto um corpo morto antes, ao vivo. Mas do alto do sexto andar, e atrás da janela, o ao vivo parecia uma imagem do jornal.

Só o choro desesperado dos familiares parecia real. E era isso que angustiava mais.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Jantarzinho

Tinha comprado tudo. Queijos gorgonzola e brie pra servir de aperitivo, junto com um vinho português que dizia na embalagem ser armazenado em barril de carvalho. Não entendia nada de vinho, mas o fato de ser armazenado em barril de carvalho parecia uma boa tirada para impressionar logo de cara. Queijos e vinho de saída.

Para o prato principal, filé mignon com molho de nozes. Parece que era uma receita tailandesa. Encomendara num restaurante pretensamente oriental, sob a orientação de que tudo que precisaria fazer era esquentar por 10 minutos sob fogo médio. Isso ele conseguiria fazer. Acompanhando a carne, um tinto seco chileno que lhe fora recomendado pelo sommelier (ou talvez um mero maître) do mesmo restaurante. Esperava que à altura do prato principal o primeiro vinho, aquele envelhecido em barril de carvalho, já tivesse ido embora junto com a entrada. Obviamente, bebida fazia parte da estratégia.

Por fim, a sobremesa. Sorvete de papaya com cassis, a ex adorava e dizia ser afrodisíaco (ainda estava em dúvida do que vinha a ser, de fato, papaya. Cassis, já desistira de descobrir) e um licor de cacau. Mera degustação, afinal, a expectativa era que os dois vinhos anteriores já dessem conta.

Tic, tac, tic, tac, e gostaria que o relógio acompanhasse o ritmo acelerado de seu coração. Mas o tempo é senhor de tudo e lhe concedia ainda meia hora. Tempo pra se barbear melhor? Passar a camisa mais uma vez? Rever a limpeza das taças e as posições dos talheres?

Não, chega de paranóia. Nesse momento tenso que antecede o encontro, o ideal é dar uma distraída. Sentou no sofá e ligou o video-game. Winning Eleven, futebolzinho para relaxar.

Conseguiu chegar à final da Copa do Mundo. Nunca um cano viera em tão boa hora. Os queijos foram bons tira-gostos com a cerveja que repousava preterida na geladeira. O filé ficaria pro almoço do dia seguinte. O vinho do barril de carvalho e o seco chileno, guardou para envelhecê-los. E iria seguir o mesmo lema nos relacionamentos. Quanto mais velho, melhor. Ligaria para a ex esposa. Assim que ganhasse aquela bendita final de Copa do mundo.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Classificados de domingo

Andava atento. Olho vivo nas melhores oportunidades. Emprego, apartamentos, carros, promoções. Seus olhos corriam os jornais, em especial os classificados, como radares. Não precisava de um apartamento novo, não podia dirigir. Um emprego novo que pagasse melhor até que cairia bem. A sala podia receber uma mobília nova, quem sabe uma TV nova. Tudo dependida dos preços de ocasião que conseguisse achar. E estava tudo ali, no jornal de domingo. Um calhamaço de mais de 1kg de papel, no qual a maior parte eram anúncios. Adorava.

Apartamento 2 quartos, cozinha ampla, armários. Terreno 450m², próximo à rodovia. Corsa 2003, documentação ok, único dono. Técnico de informática, 2 anos de experiência comprovada, que possua carro. Loira, estilo gaucha, 21 anos, recém chegada, só hoteis.

Sentiu um comichão inédito ao passar os olhos pelos classificados a partir dali. Morena escultural, topa tudo. Ruivinha natural, ideal para executivos e casais. Adriana, seios fenomenais. Laís, goiana, especial. Tina, bronzeada, seios fartos. Carla, enlouquecedora. Bunda linda. Dandara, negra sexy e provocante.

Corpo. Seios. Linda. Fabulosa. Bunda. Swing. Especial. Anal. Gaucha. Casais.

Aos 9 anos, a primeira ereção.

Não tinha mais olhos para a TV de Plasma em promoção que receberia o videogame na sala; um emprego que pagasse melhor que os 10 reais que ganhava por lavar o carro do pai aos domingos: esqueça. O apartamento em que moravam estava ótimo, não precisava de um quarto só pra ele. Um carro... pra quê?

Agora, todo um novo mundo surgia. Um mundo democrático, onde conviviam todas as etnias. E todas tinham nome e telefone.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Clóvis e a intelectualidade

Clovis tinha uma coleção de filmes. Beirava os 200, em DVD. Ok, nem todos eram originais, mas qual o problema? O importante é que eram filmes. Tinha muito Kubrick, mas, para o mundo, seu cineasta favorito era Pasolini. Dos novos, só os asiáticos lhe ocupavam as prateleiras. Bom, no fundo, no fundo, ele nem sentia muito prazer em ver este cinema contemporâneo. Prazer mesmo, de assistir, era com Billy Wilder. Esses asiáticos, e Kubrick, e Pasolini, eram o cinema que ele gostaria de fazer. De ver, Wilder. Em segredo.

Livros, ele tinha uns 150 pelo menos, esses sim, sempre originais, ele não admitia essas xerox porcas que os universitários costumam fazer. Tinha algumas preciosidades realmente caras. Comprou uma vez num sebo uma edição de Os Miseráveis em francês datada do século XIX. Essa edição ele nunca leu, pra não esgarçar a costura das páginas. Leu Victor Hugo numa edição de bolso comprada por menos de quinze reais numa banca de jornal. Mas ele não se importava muito com essas frescuras. O importante era a obra. Capa dura, capa mole, papel gramatura alta, costura de linha de ouro, bobagens. O importante era a obra, e ele tinha pra lá de 150. E se orgulhava de ter lido praticamente todas. Boa parte, mais de uma vez. Mas ainda não lera nenhum Joyce. E não conseguiu terminar de ler Irmãos Karamazov até hoje. Esses pecados ele não conta.

Também era um amante de boa música. E ele sempre enfatizava: música! Não havia espaço pra voz, pra letra, pra nada que não fossem notas musicais originadas de instrumentos. Por isso, só música instrumental. Tinha um fraco por Vivaldi, mas não espalhava. Preferia pagar de admirador dos russos. Tchaikovsky, Rachmanioff. No fundo, sabia que era mais pose do que gosto. Mas não conseguia admitir que ainda se emocionava com as Quatro Estações.

O pior foi quando tentou alcançar no alto da estante um exemplar de Othelo, pra ler mais uma vez. Se apoiou na estante de DVDs, bem na parte da coletânea de Marilyn Monroe. Sabia que não devia ter entulhado tantos DVDs naquela estante fininha. A estante partiu e ele se desequilibrou e caiu no chão. Os DVDs cairam em cima dele. Bateu a cabeça numa cadeira que usava para empilhar alguns LPs de Bach que já não tinham mais utilidade - a vitrola já não funcionava há anos.

Agora não mexe nada além das pálpebras e de um dos dedos da mão esquerda. Ironicamente, “Quanto mais quente melhor” caiu em cima do seu peito, e tudo o que ele consegue ver é Um filme de Billy Wilder no alto da caixinha. E a edição de luxo de “Ulisses” está bem na beirada da estante. Um vento e ela cai, em cima de Clóvis.