sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Clóvis e a intelectualidade

Clovis tinha uma coleção de filmes. Beirava os 200, em DVD. Ok, nem todos eram originais, mas qual o problema? O importante é que eram filmes. Tinha muito Kubrick, mas, para o mundo, seu cineasta favorito era Pasolini. Dos novos, só os asiáticos lhe ocupavam as prateleiras. Bom, no fundo, no fundo, ele nem sentia muito prazer em ver este cinema contemporâneo. Prazer mesmo, de assistir, era com Billy Wilder. Esses asiáticos, e Kubrick, e Pasolini, eram o cinema que ele gostaria de fazer. De ver, Wilder. Em segredo.

Livros, ele tinha uns 150 pelo menos, esses sim, sempre originais, ele não admitia essas xerox porcas que os universitários costumam fazer. Tinha algumas preciosidades realmente caras. Comprou uma vez num sebo uma edição de Os Miseráveis em francês datada do século XIX. Essa edição ele nunca leu, pra não esgarçar a costura das páginas. Leu Victor Hugo numa edição de bolso comprada por menos de quinze reais numa banca de jornal. Mas ele não se importava muito com essas frescuras. O importante era a obra. Capa dura, capa mole, papel gramatura alta, costura de linha de ouro, bobagens. O importante era a obra, e ele tinha pra lá de 150. E se orgulhava de ter lido praticamente todas. Boa parte, mais de uma vez. Mas ainda não lera nenhum Joyce. E não conseguiu terminar de ler Irmãos Karamazov até hoje. Esses pecados ele não conta.

Também era um amante de boa música. E ele sempre enfatizava: música! Não havia espaço pra voz, pra letra, pra nada que não fossem notas musicais originadas de instrumentos. Por isso, só música instrumental. Tinha um fraco por Vivaldi, mas não espalhava. Preferia pagar de admirador dos russos. Tchaikovsky, Rachmanioff. No fundo, sabia que era mais pose do que gosto. Mas não conseguia admitir que ainda se emocionava com as Quatro Estações.

O pior foi quando tentou alcançar no alto da estante um exemplar de Othelo, pra ler mais uma vez. Se apoiou na estante de DVDs, bem na parte da coletânea de Marilyn Monroe. Sabia que não devia ter entulhado tantos DVDs naquela estante fininha. A estante partiu e ele se desequilibrou e caiu no chão. Os DVDs cairam em cima dele. Bateu a cabeça numa cadeira que usava para empilhar alguns LPs de Bach que já não tinham mais utilidade - a vitrola já não funcionava há anos.

Agora não mexe nada além das pálpebras e de um dos dedos da mão esquerda. Ironicamente, “Quanto mais quente melhor” caiu em cima do seu peito, e tudo o que ele consegue ver é Um filme de Billy Wilder no alto da caixinha. E a edição de luxo de “Ulisses” está bem na beirada da estante. Um vento e ela cai, em cima de Clóvis.

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